Caos, chuva e Caetano com 4h de atraso: a amarga estreia do festival ‘Doce Maravilha’ no Rio

Primeira edição do festival teve boa escalação de artistas e vários problemas para o público. ‘Obrigado por terem me esperado. Nem eu sabia se vinha ou se não vinha’, disse Caetano

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Foto do author Ana Lourenço
Foto do author João Abel
Por Ana Lourenço e João Abel
Atualização:

O que era para ser uma noite histórica virou uma prova de resistência para os fãs de Caetano Veloso. Foram exatas 4 horas e 28 minutos entre o horário marcado para o show do cantor no festival Doce Maravilha, no Rio de Janeiro, e o momento em que ele finalmente pisou no palco. Já era 0h58 de segunda-feira, 14, quando o baiano de 81 anos iniciou a apresentação do aguardado show em celebração dos 50 anos do álbum Transa. Ele vestia um casaco vermelho para se proteger do frio e da chuva. A esta altura, parte do público já tinha deixado o local, mas muitos resistiram ao longo da madrugada.

Caetano Veloso canta o álbum 'Transa' no festival Doce Maravilha Foto: Alex Woloch

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A lama e os atrasos devido à chuva eram compreensíveis. Quem vai a festivais de música está acostumado com os imprevistos. Mas a falta de transparência deixou um gosto amargo. Até o último instante, a dúvida se Caetano subiria ao palco pairou no ar. “Obrigado por terem me esperado. Nem eu sabia se vinha ou se não vinha. Mas eu queria vir e vim”, declarou o cantor após abrir sua setlist com You Don’t Know Me.

Em publicação no Instagram, Paula Lavigne, produtora e esposa de Caetano, explicou que a apresentação original, marcada para 20h30 de domingo, foi barrada por conta do tempo e de falhas nos equipamentos. “O palco que o Caetano teria que subir não tem a menor condição de se apresentar. O som pifou, está dando choque”, disse ao site Gshow.

O compositor e toda a sua equipe foram então obrigados a atravessar a extensão do festival e se apresentaram em um palco mais acanhado, o MangoLab, mas com maior proteção da chuva. Ao lado de Jards Macalé, Caetano cantou não só as sete faixas de Transa, como também músicas que ele mesmo definiu como “pré-Transa” e “pós-Transa”. Mas foi com Mora na Filosofia e Nine Out Of Ten, do icônico álbum, que arrebatou o público já por volta das 2 da manhã.

Os tons originais e a extensa duração de todas as canções foram mantidas. “Eu acabei de fazer 81 anos e, por isso, nem sempre alcanço todas as notas”, disse, pedindo desculpas. Não era preciso. Quem ficou gostou do que viu: um show que merecia mais cuidado técnico e até uma turnê para chamar de seu.

Mau tempo e imprevistos

A chuva não era uma surpresa. Os fãs se preparam para um domingo de temporal no Rio, como apontava a previsão, mas a organização do Doce Maravilha mostrou que não havia estratégia clara para lidar com a situação.

Se a Marina da Glória era o ‘cenário perfeito’, o tempo não ajudou e a ventania no Rio prejudicou a programação de ambos os dias. No sábado, estruturas foram danificadas e shows postergados, sem avisos claros ao público. Já no domingo, além de diversos atrasos, houve inversões de programação feitas às pressas.

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Quando, às 20h53, a locutora do palco principal anunciou que Caetano ficaria para depois e a entrada de Marcelo D2 seria antecipada em seu lugar, parte do público vaiou. Coube ao rapper segurar a responsabilidade e se apresentar em condições precárias em sua cidade natal. Bom anfitrião carioca, D2 segurou a bronca, tomou choque do microfone algumas vezes e conseguiu entregar o prometido show de À Procura da Batida Perfeita.

No primeiro dia, Emicida e Maria Rita tiveram o show tão prejudicado pelo som que, a certa altura, tiraram o retorno para ouvir qual era o coro do público, que implorava para que o volume fosse aumentado.

Não havia pontos de hidratação espalhados pelo festival, conforme o prometido. Os banheiros femininos tinham filas tão descomunais que as mulheres passaram a usar também as cabines dos sanitários masculinos para encurtar o tempo de espera.

Para a funcionária pública Maria Amélia, de 55 anos, outro problema foi a organização logística da Marina da Glória. Afinal, para permitir a passagem de barcos, uma ponte retrátil retinha os visitantes para longe dos palcos por alguns minutos. “Os shows já tinham começado e isso segurava a galera por um tempo. Foi ridículo. Achei uma falta de respeito e acho que cabia ao festival cobrar isso da Marina”, opinou.

Chuva, frio e lama não impediram os fãs de esperarem ansiosamente apresentação de Caetano Veloso Foto: Ana Lourenço

Shows marcantes salvam festival

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O ‘Doce’ quis começar gigante e contou com um line-up invejável, justificando o status de ‘festa da música brasileira’. Profundo conhecedor da história da MPB, Nelson Motta, curador do festival, prometeu entregar misturas refinadas. E foi feliz. Sobrou repertório de qualidade.

Ao lado da MangoLab, laboratório cultural que atua com novos nomes da música brasileira, eles garantiram liberdade para os artistas festejarem sua brasilidade - seja relembrando épocas ou homenageando nomes marcantes. Assim as apresentações seriam únicas para o festival. Com algumas parcerias improváveis, e outras nem tanto, o ‘Doce’ mostrou outras visões da nossa música.

Foi justamente isso que fez idosos e crianças se dividirem entre os dois palcos da Marina da Glória: presenciar o encontro de gerações e ritmos representativos da música brasileira.

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João Gomes entregou carisma embaixo do aguaceiro no segundo dia. Mesmo com chuva forte, o cantor colocou todo mundo para dançar no ritmo do piseiro, tanto com suas músicas próprias, quanto de outros compositores como Pitty, Paula Toller e Vanessa da Mata, que subiu ao palco do seu lado.

João Gomes faz show memorável no segundo dia de festival Doce Maravilha ao lado de Vanessa da Mata Foto: Felipe Gomes

Um dos encontros mais impactantes, como visto pela primeira vez em 2020 em Salvador, fechou o palco principal no sábado. Gilberto Gil entrou com a grandiosidade e BaianaSystem trouxe a potência.

Para assistir ao dueto, a jornalista Carina Guedes, 46 anos, fez questão de trazer toda a família. “Meu irmão mora na Holanda há quatro anos e veio para cá com a esposa e os dois filhos, e eu precisava deixar eles experimentarem o Brasil um pouco”, conta. “O maior contato com a música brasileira é pelos streamings, mas é outra coisa estar aqui, vivenciar.”

Foi lindo ver a força e atemporalidade de algumas canções. Era como se novas histórias fossem contadas através das músicas e dos artistas: um se inspirando no outro e orgulhosos de dividirem o mesmo palco.

Faraó, de Margareth Menezes, não só teve participação de Luedji Luna, como de cada um que se espremeu na multidão. Durante o show de Maria Rita e Emicida, O bêbado e o equilibrista, de 1979, foi entoada em coro. Já Dois Rios, clássico do Skank que completa 20 anos em 2023, emocionou o público na voz do compositor Samuel Rosa, e da dupla Anavitória.

Já no fim do segundo dia, a linda sincronia de Péricles e Liniker encantou o público e fez as pessoas se esquecerem por um instante de todo o perrengue da organização. “Quero fazer esse show cinco vezes no ano”, declarou a cantora ao encerrar a performance.

‘Doce’ não se desculpa e apaga transmissão

O Estadão procurou a organização do Doce Maravilha para falar sobre os atrasos e os problemas logísticos. De acordo com eles, “a produção buscou as melhores soluções possíveis para garantir todas as apresentações em segurança”.

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“Desde o anúncio do evento, dia 15 de maio, indicamos que os shows seriam na Marina da Glória, local totalmente aberto. No domingo, dia 13 de agosto, a cidade do Rio de Janeiro recebeu chuvas ao longo de todo o dia. Dessa forma, foi necessária a inversão da ordem dos shows com alteração de palco. Entregamos para o público todas as apresentações anunciadas, fechando com o show histórico de Caetano Veloso”, afirmou a assessoria do festival.

No Instagram, mais de 12 horas após o fim do evento, um comunicado oficial foi publicado sem retratação pelas falhas de organização. “Montamos uma das maiores estruturas já vistas na Marina da Glória para receber a todos com conforto e segurança”, diz o post. Nos comentários, fãs indignados criticaram o posicionamento.

No canal do YouTube da Bônus Track, que transmitiu o festival na íntegra, o vídeo do segundo dia, onde os maiores problemas foram sentidos, foi apagado e os comentários desativados. Ainda é possível assistir às apresentações do dia 1:

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