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Martinho da Vila: ‘Nunca estou nessas listas de melhores compositores. Isso é preconceito, sim’

O cantor e compositor lança, aos 85 anos, ‘Negra Ópera’, um disco mais ‘intimista’ e ‘com mais drama’, e diz que Adoniran Barbosa era negro

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Por Danilo Casaletti
Atualização:
O cantor Martinho da Vila criou sua Negra Ópera Foto: Leo Aversa

Martinho da Vila, 85 anos, estava decidido a não lançar mais discos. Com o formato físico quase extinto e o mercado fonográfico cada vez mais fragmentado, a intenção do cantor e compositor era seguir a onda e lançar, uma vez ou outra, uma ou mais músicas.

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Para atender ao pedido de sua gravadora e voltar atrás na resolução, Martinho precisava de um estímulo. Encontrou a novidade olhando para sua própria história. Assim nasceu Negra Ópera, álbum que Martinho lança nesta sexta-feira, 12, na véspera do aniversário da Abolição da Escravatura no Brasil.

Um disco “dramático”, na visão de seu criador. Estruturado como uma ópera, com abertura, atos e personagens.

O show de lançamento do álbum será neste final de semana, dias 12, 13 e 14, no Teatro J. Safra. Há ingressos disponíveis apenas para o domingo.

“Meus discos são muito alegres, com muitos arranjos, ritmos, coro. Precisava de algo mais intimista, com mais drama”, resume ao Estadão, em conversa por vídeo chamada, o compositor que, no passado, sentenciou, em uma de suas canções, que “o samba é o pai da alegria”.

O cantor e compositor não mudou de opinião. Mas Martinho sabe que o samba tradicional é um retrato da sociedade e de seus criadores. Percepções captadas por seus compositores ou, invariavelmente, canções influenciadas pelos terreiros e rodas de samba onde nascem.

Nesse sentido, Negra Ópera tem, entre regravações - ou melhor, revisões feitas por Martinho em canções de sua autoria e de outros compositores - e nas três canções inéditas, mensagens bastante objetivas, todas ligadas às questões negras.

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“O Brasil deve muito aos negros. Foram eles que construíram esse país, que mais influenciaram na forma do Brasil de hoje. Influenciaram na língua - o português que se fala aqui não é o de Portugal. E a culinária, que é rica, graças aos negros. E esse modo de falar de tristeza sem cair no profundo desse sentimento”, explica Martinho, ampliando a definição de seu novo álbum.

Essa certeza deu a Martinho a exata noção de que era imprescindível não abrir espaço para o racismo. Dentro da música brasileira, e de seus pares, ele diz jamais ter sofrido qualquer tipo de discriminação. Entretanto, compartilha uma percepção sobre o que pode ser um preconceito velado.

“Nunca estou nessas listas de melhores músicas, melhores compositores que têm todo ano. Isso é um pouco de preconceito, sim”, diz.

Início. A abertura do álbum é uma saudação a Zumbi. O tema instrumental Negra Ópera (Zumbi dos Palmares, Zumbi), é amarrado com Heróis da Liberdade, samba clássico do Império Serrano, de Mano Décio da Viola, Manoel Ferreira e Silas de Oliveira - os tais compositores que jamais foram insensíveis a tudo que presenciaram em suas comunidades.

A independência do povo negro, capta a ópera de Martinho, passa pela liberdade religiosa. Duas faixas abordam a temática. Uma delas é Timbó, de Ramon Russo, a história de um personagem descrito como “grande feiticeiro”.

Em Exú das Sete, inédita de Martinho, a entidade é saudada pelos atabaques e gritos de evocação. O compositor, que explica ser católico de formação e ter os santos de cabeça assentados no candomblé, faz questão de desfazer a confusão que associa os exus ao mal.

“Segundo o catolicismo, todos nós temos um anjo da guarda. Segundo as religiões africanas, todos nós temos um exu. São correspondentes. Fiz uma homenagem ao meu”, explica.

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Se Martinho frequenta uma ou outra religião: “Não vou a nenhuma. Sou, mas não sou. Sabe como é?”, diz, aos risos.

Próximos atos. A sequência de Negra Ópera traz personagens do cotidiano. Uma delas é Linda Madalena, uma “cabrocha bonita do samba”, samba de terreiro feito por Martinho em 1983. A canção é uma das que passa pela correção, puxada agora para o drama.

Martinho dá vozes aos excluídos em duas canções de Zé Keti que trazem personagens típicos do morro: o malandro Malvadeza Durão, cantada em dueto com a filha Mart’nália, e Acender as Velas, sobre quem vela os mortos em meio ao descaso com comunidades, essa com a adesão de Chico César.

Adoniran não era branco. Escapou de branco, preto é

Martinho da Vila

Mais dolente ainda é a versão de Martinho para Iracema, samba de Adoniran Barbosa que encerra o disco. “Adoniran não era branco. Escapou de branco, preto é”, define Martinho.

O comentário de Martinho sobre o colega paulista é muito mais abrangente do que uma questão de cor. Tanto um quanto outro são cronistas de seu tempo, com compromisso com o povo. É por aí também que passa a identificação entre eles.

Iracema, a vítima de atropelamento às vésperas do casamento, assim como Mãe Solteira, de Wilson Batista e Jorge de Castro, sobre a mulher que se suicida pondo fogo no próprio corpo por “vergonha de ser mãe solteira”, que Martinho também regravou agora, são mulheres brasileiras, brancas ou negras, ainda marginalizadas.

Martinho, Adoniran e outros sambistas se dispuseram a olhar para elas. Alegre ou dramático, assim é o samba. Retrato da vida.

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Capa do álbum Negra Ópera, de Martinho da Vila Foto: Sony Music

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