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The Town tem ‘tenda de acolhimento’ para fãs que sofrem assédio, preconceito e até crise de pânico

Conheça estes espaços, que viraram tendência em grandes festivais. Equipes multidisciplinares identificam e orientam frequentadores vulneráveis, o que vai além do atendimento médico

Foto do author Danilo Casaletti
Por Danilo Casaletti

De um tempo para cá, os frequentadores de festivais – e o formato tem se tornado cada vez mais frequente por todo o país – devem ter reparado em tendas onde é possível ler, em letras grandes: acolhimento.

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O serviço, que se difere do posto médico, está presente no The Town, festival que ocorre na cidade de São Paulo desde sábado, 2 de setembro. Esteve presente também no Festival Turá, realizado em junho no Parque Ibirapuera. Nesse, ocupou um espaço nobre e bastante visível, a poucos metros do palco no qual se apresentaram nomes como Gilberto Gil, Jorge Ben Jor, Maria Rita, Pitty, entre outros artistas.

A área de acolhimento do The Town fica na São Paulo Square, uma espécie de praça com quiosques e jardins que tem apresentações de jazz, e é identificada como The Town Plural. A equipe formada por psicólogas e advogados para atender quem for ou se sentir vítima de alguma violação.

O Estadão visitou o espaço no sábado, primeiro dia do festival. Além da equipe de acolhedores do próprio festival, entidades e organizações ligadas aos direitos humanos em geral fiscalizavam o trabalho, inclusive membros da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo e do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas.

Imagem do espaço The Town plural, espaço reservado ao acolhimento durante o festival Foto: FOTO TABA BENEDICTO / ESTADAO

Uma das fontes ouvidas pela reportagem elogiou a iniciativa, mas apontou pontos de melhoria. Batizado de The Town Plural, o espaço não traz em nenhuma placa a palavra ‘acolhimento’, como a iniciativa é conhecida e está sendo difundida entre os frequentadores de festivais. Além disso, o Posto Médico fica a cerca de 200 metros do espaço e a distância é cortada por uma das vias de passagem do público, o que faria com que uma vítima que tivesse que transitar entre um local e local ficasse exposta.

A advogada Juliana Souza, presidente do Instituto Desvelando Oris, que é voltado à promoção da equidade racial e de gênero, convidada pelo The Town a acompanhar o trabalho, diz que o espaço é um avanço. “Os festivais precisam ser plurais”, diz. Para ela, que também ministrou treinamento para as equipes de colaboradores do evento, é preciso conscientizar a todos. “Temos que mostrar que nenhum preconceito será tolerado e que temos leis para punir quem pratica atos como esses”, disse.

O festival tem um banheiro sem gênero, ou um banheiro para todos, também em uma área afastada dos palcos e atrações principais. Ao Estadão, a assessoria do evento disse que ele é destinado a pessoas não-binárias, aquelas que não pertencem ao gênero masculino ou feminino. Entretanto, já presente em alguns festivais, o banheiro para todos pode ser usado, como o nome indica, por todos.

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Em outro espaço, o festival oferece a Sala de Acomodação e Regulação Sensorial, indicada especialmente àquelas que possuem Transtorno de Processamento Sensorial (TPS), - com iluminação e som reduzidos e uma equipe de terapeutas apta para atender às necessidades desses usuários.

“O The Town nasce com o compromisso de ser um festival inclusivo, tendo uma área de pluralidade para tratar a diversidade e inclusão, entendemos que cada pessoa é única, e que juntas formamos uma sociedade plural”, diz Thiago Amaral, coordenador de Acessibilidade e Pluralidade da Rock World, empresa que produz o Rock in Rio e o The Town.

Movimento nasceu com mulheres

Ana Addobbati (à direita) e sua equipe em ação no Festival Turá Foto: Tatyanna Hayne

A palavra acolhimento é bastante difundida no meio terapêutico, como uma abordagem de escuta, de inclusão e humanização. Nos festivais, devido a alta concentração de pessoas, e um ambiente que (apenas) parece ser mais permissivo, o ato de acolher ganha função de vigilância máxima. Ninguém pode estar desprotegido e à mercê de assédio e violência sexual, homofobia, racismo ou qualquer outro tipo de violação.

Esse trabalho começou muito tempo antes da lei, ainda em fase de implementação, que determina medidas de auxílio a mulheres em situação de risco, incluindo a violência psicológica, em bares, restaurantes, casas noturnas e eventos, sancionada pelo governo de São Paulo em fevereiro deste ano.

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A jornalista e administradora Ana Addobbati, fundadora e diretora da organização Livre de Assédio, fundada em 2017, foi uma das pioneiras no desenvolvimento de protocolos de atendimentos em festivais. Em 2018, Ana criou um modelo para ser aplicativo no No Ar Coquetel Molotov, em Recife, um dos mais importantes eventos indies da América Latina.

Uma das inspirações foi o protocolo No Callem, criado pelo governo de Barcelona, na Espanha, naquele mesmo ano – e usado recentemente no caso do jogador Daniel Alves. Ana já atuou em festivais como Turá e Girls e na Arena da Copa do Mundo em Copacabana, para um público de 20 mil pessoas. Fará o Primavera Sound, em São Paulo, e os shows da cantora Taylor Swift na capital paulista e no Rio de Janeiro.

No início, ela e sua equipe entravam nesses ambientes de bares, shows e festivais para criar mecanismos de segurança, em primeiro momento, para mulheres e, posteriormente, para a população LGBTQIA+.

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“Nesses lugares, as pessoas acham que, porque estão pagando, podem tudo. Além disso, há uma cultura machista, misógina, homofóbica e racista”, diz Ana, que tem, em sua equipe, advogadas, psicólogas e terapeutas. O número de profissionais envolvidos varia de acordo com o tamanho e complexidade do evento – há aqueles, por exemplo, em que a cultura machista impera, como os que trazem atrações sertanejas.

Foi preciso furar a bolha

Com o tempo, Ana furou a bolha de festivais afirmativos e foi chamada para atuar em eventos como carnaval e camarotes – são os promotores dos eventos ou seus patrocinadores que contratam a equipe de acolhimento. O trabalho todo é desenvolvido com apoio das equipes de segurança, brigada e posto médico.

Além das tendas identificadas como ‘acolhimento’ – cada espaço, chama de uma maneira – viu a necessidade de fazer a busca ativa por vítimas. Ou seja, sua equipe circula por todo o evento para flagrar casos de abusos sexuais, agressões ou pessoas em vulnerabilidade.

Uma pessoa alcoolizada, por exemplo, é levada ao posto médico. A equipe de acolhimento acompanha o desenrolar do estado de saúde da pessoa e pode ajudar com que essa pessoa saia em segurança do evento. Um parente pode ser acionado. Os acolhedores também aconselham que os amigos ou acompanhantes não permitam que vá embora ou seja colocada em um carro de aplicativo sozinha. O objetivo é mitigar os riscos. Uma vítima de estupro ou assédio sexual é informada sobre seus direitos e qual atitudes deve tomar.

O acolhimento também fica de olho em casos de abusos em filas de revistas pessoais. “Há muita risadinha em torno da população trans. Há casos em que querem pegar no cabelo afro para saber se não há uma faca escondida, por exemplo. É ultrajante sair de casa, pagar caro para estar em um festival, e ver a violência do dia-a-dia reproduzida lá”, opina Ana.

Todos os casos, que também podem vir por meio de canais de denúncias, são levados ao conhecimento dos organizadores e a resposta é acompanhada pela equipe de acolhimento.

TB SAO PAULO SP 07/09/2023 CADERNO 2 - THE TOWN 2023/ THE TOWN PLURAL - Imagem do espaço The Town plural, espaço reservado ao acolhimento durante o festival. FOTO TABA BENEDICTO / ESTADAO Foto: TABA BENEDICTO

Todo mundo pode ser um acolhedor

A produtora de eventos Claudia Tohi, da Movimento Agência, começou a trabalhar com acolhimento há seis anos. Com o tempo percebeu que, dentro de um evento ou festival, as violações, sejam elas de qualquer natureza, têm um caráter psicossocial e merecem, sobretudo, empatia, algo que muitas vezes uma equipe de segurança ou de brigada não pode ou não está preparada para receber.

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Claudia já atuou em eventos para 35 mil pessoas, com uma equipe de 35 acolhedoras, formada por advogadas, psicólogas e guias terapêuticas. As profissionais quase sempre são mulheres - muitas delas pretas. Fez o Arraial Estrelado e o projeto Numanice, da cantora Ludmilla. Da artista, recebeu como missão garantir que 80% da produção fosse de pessoas pretas.

“A gente acompanha qualquer tipo de vulnerabilidade. Desde brigas até pessoas desacompanhadas, passando por furtos”, explica Claudia.

Muitos promotores ainda estão se acostumando com o acolhimento. Há o medo que a exposição de casos geram repercussão na imprensa. O serviço também significa um custo a mais para eles. Uma estrutura básica custa em torno de R$ 8 mil.

Alguns, diz Claudia, alegam que não registram casos de violência, assédio ou racismo. “Eu sempre falo: não tem porque não chegou. Por isso, sempre prezo pela ronda, pela busca das vítimas. Sempre em dupla para que ela nunca fica sozinha se uma das acolhedoras precisar chamar alguém”, explica Claudia.

“Meu objetivo, pode parecer utópico, mas é o de que todo mundo se torne um acolhedor, que saiba lidar com qualquer tipo de violência”, completa.

A conscientização tem mais aderência nos frequentadores. “As gerações anteriores, como a minha, foram muito negligenciadas, mas uma menina de 16 anos, atualmente, já sai de casa sabendo o que é um assédio. Por isso, são mais exigentes”, diz Ana.

Casos de ansiedade e crises de pânico são cada vez mais comuns

Para além dos casos de assédio ou abuso sexual, racismo e homofobia, as equipes de acolhedoras têm tido uma demanda cada vez maior de lidar com crises de ansiedade e de pânico em festivais.

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A psicóloga Fabiana Barisson Teixeira, sócia de Claudia Tohi, começou a atuar como apoio em festas e eventos universitários – as comissões não sabiam como lidar com casos de vítimas de abusos, racismo e homofobia.

A profissional, depende do tipo de evento, já sabe o que esperar pela frente. Em festa eletrônicas, prevalece o uso de drogas. Nos sertanejos, a bebida é a principal droga lícita. Em eventos de rap, tudo é mais calmo.

Nos festivais, além de Fabiana lidar com demandas como essas, tem visto crescer o número de crises de ansiedade. Muitas vezes, essas situações de transtorno mental ficam no topo dos atendimentos dos acolhedores. Os casos aumentaram no pós-pandemia.

Os casos triplicaram. Muitas pessoas ainda não se acostumaram a vir para um festival, encontrar muita gente. Ficar em frente ao som muito alto é outro fator

Fabiana Barisson Teixeira

Fabiana diz que a presença de um profissional de psicologia dentro de festivais se tornou essencial dentro de um festival. “É preciso saber o que falar, explicar os direitos dela. Quando levamos alguém para o ambulatório, eles cuidam da parte física. Eu cuido do psicológico. Não só da vítima, mas dos amigos que estão com ela, da família que pode receber a notícia de um abuso ou estupro. Eu sou branca. Se o caso for de racismo, encaminho para uma profissional preta”, explica.

Ludmilla se apresenta no Palco Skylink durante o festival The Town 2023 Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

De olho também nos trabalhadores e artistas

O acolhimento é algo para humanizar os festivais e eventos de música. Por isso, vai muito além do cuidado apenas com o público. Trabalhadores também são vítimas de violação ou vulneráveis à ansiedade, acidentes ou cansaço.

Ana Addobbati, que atuou com sua equipe no Festival Turá, diz que, junto com a produção do evento, a Ticket for Fun, fez um protocolo piloto para apurar denúncias de trabalho escravo, abusos ou negligências cometidas por prestadores de serviço ou até mesmo por parte do público.

Os colaboradores receberam cartilhas informativas e acesso a canais de denúncia para relatar qualquer violação. “Há colaboradoras que não denunciam por medo de perderem o emprego ou não serem mais chamadas. Já recebemos denúncia de um cliente avisando que tinha um cara passando a mão em uma trabalhadora”, conta Ana.

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Artistas também recebem atenção. Fabiana já atendeu alguns. “Já teve artista que recebeu a notícia que perdeu um familiar, outro estava com ansiedade. Já atendi até crise de labirintite”, conta a psicóloga.

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