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'Não há mais acordo entre arte e espectadores', afirma Jacques Rancière

Filósofo francês conta que recusou a especialização do conhecimento, compara política à arte e fala sobre modernidade em entrevista exclusiva

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Por Daniel Augusto
O francês Jacques Rancière se tornou filósofo para evitar a especialização do conhecimento Foto: Ulf Andersen/Aurimages/AFP

“Eu me tornei filósofo um pouco por acaso”, conta Jacques Rancière em sua casa. Quando jovem, hesitou entre a filosofia e a literatura, mas acabou optando pela primeira porque se julgava “menos especialista”. Contou para sua decisão a figura de Louis Althusser, filósofo que provocou sua geração a “uma certa superação em relação ao conforto intelectual”. A soma desses motivos pode ser uma das entradas para compreender seu itinerário: “Trabalhei toda a minha vida preferencialmente sobre as bordas”. Fez-se, assim, um crítico dos limites que estabelecem o que é filosofia, literatura, ciência, ideologia. Ou um filósofo que desenvolve conceitualmente a dialética do saber e do poder (tal como Alain Badiou certa vez o descreveu).

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Incertezas Críticas - Jacques Rancière, de Grifa Filmes

Tais características de Rancière têm um possível marco inicial: o Maio de 1968, período de uma crise da noção de autoridade na França. Nessa perspectiva, o título de um do seus livros, O Mestre Ignorante, já é sugestivo, assim como sua defesa do amador quando fala de cinema: “O amadorismo também é uma posição teórica e política, a que recusa a autoridade dos especialistas”. Ou seja, a posição do “menos especialista” é um modo de escapar dos constrangimentos do poder, desobstruir o saber e recolocar o debate em outros termos. Numa palavra: é ser fiel à inquietude de 1968.

Rancière, um dos filósofos da série Incertezas Críticas, produzida pela Grifa Filmes, cuja segunda temporada irá ao ar em maio no Canal Curta, começou “como estudante marxista, defendendo os direitos da ciência contra a ideologia”, mas passou das ciências humanas para o estudo das fronteiras que as compõem, uma vez que “a ciência já foi usada como um modo de implementar uma distribuição dos seres humanos”. Trata-se de algo que o filósofo constatou, por exemplo, quando se tornou “uma espécie de historiador, mergulhado nos arquivos operários”. Nessa investigação, observou como “a questão para os operários que procuravam emancipar-se era a de sair de um mundo onde deviam agir como operários”. A observação, que parece restrita à classe estudada, tem alcance mais amplo: afinal, nossos atos não estão restritos a certas formas de organização do sensível?

Um dos livros centrais para compreensão da questão é A Partilha do Sensível, no qual ele se propõe a falar da relação entre estética e política. Trata-se de uma relação que mais de uma vez resultou numa sobrevalorização da política e num rebaixamento da arte, uma vez que o senso comum geralmente vê a política como “governo das coisas sérias, as decisões importantes, a gestão do Estado”, ao passo que a arte seria “algo um pouco mais para o lado da contemplação”. Na visão do filósofo, essa perspectiva é equivocada: “a política é feita com palavras, imagens, maneiras de ocupar os espaços, com escansões do tempo. É uma maneira de criar algo como uma cena comum ou um mundo comum”. Assim, há um ponto onde arte e política se encontram “aquém delas mesmas”, uma vez que, em ambas, “usamos palavras, gestos, imagens, espaços e tempos são separados”. 

Rancière também está atento como muitas divisões da história da arte foram recortes nos quais se tentou diferenciar uma mesma humanidade. Antes do século 17, por exemplo, “existiam conceitos que diziam por que e como as obras podiam ser belas. Definiam-se regras e, ao mesmo tempo, se pressupunha uma espécie de acordo entre elas e o prazer do espectador”. Tais regras remetiam “ao gosto e à sensibilidade de um público de elite muito particular”. No século 18, porém, isso mudou: “não é mais tanto a questão de definir as artes com regras, mas sim definir um mundo da arte”. O ponto de passagem é registrado por Kant, quando ele diz que “o belo é o que apraz universalmente sem conceito”. Ao que Rancière completa: “não há mais acordo entre as regras da arte e as da emoção dos espectadores”.

Para ele, um caso produtivo para observar tal mudança é Flaubert. Antes dele, dizia-se que existiam “temas apropriados à arte, porque são nobres”, assim como “formas apropriadas para esses temas”. Contrário a isso, Flaubert propõe que “não há tema nobre ou vil”, ao mesmo tempo que apresenta novas formas. Nas palavras de Rancière, “tudo acontece como se houvesse uma relação entre a novidade artística e uma espécie de promoção, que faz com que as pessoas comuns comecem a experimentar sentimentos, aspirações que normalmente não lhe pertenciam”.

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Hoje, para Rancière, o momento atual do regime estético das artes caracteriza-se por uma relação singular entre arte e política: “tudo se passa como se a arte tentasse repovoar o mundo com uma série de manifestações que desapareceram da visibilidade”. Quando Godard “convoca um pouco todas as imagens possíveis e imagináveis”, ele tenta “reconstruir um mundo comum”. O momento atual da arte é uma configuração da inquietação, da vontade de ser “menos especialista”, que, num mundo dominado por algumas formas de organização do sensível, pode ser a exceção que permite descortinar um horizonte melhor.

*Daniel Augusto é diretor de cinema, mestre em Literatura Brasileira e doutor em Filosofia pela USP

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