RODRIGO FONSECA Basta uma frase "Ficar doente por fora despista as dores de dentro", seguida pelo desabafo "Eu ando triste como nunca", para que Maitê Proença desmonte qualquer distanciamento que o público possa vir a ter com o eu lírico que está em cena em "O Pior de Mim". Esse é o título do confessionário em forma de peça - e, mais adiante, livro - de sua autoria, que revela sua maturação na lida com a palavra desde seus tempos como cronista, na revista "Época", em 2003 e 2004. Mas o que se vê, aos fins de semana, no palco do Teatro Prudential, na Glória, no RJ, após uma aclamada encarnação online, em 2020, é uma (potente) espécie de devir Pedro Nava (1903-1984), mito do memorialismo na literatura nacional. Mito que esculpiu a si mesmo, escrevendo "Balão Cativo" e "Baú de Ossos", em reinações como "A experiência é um farol voltado para trás". O texto de Maitê, escrito com a tinta do resfolego e do turbilhão, tira a gente da poltrona em solavancos que demonstram o olhar-farol dela (esse de que Nava falava) para cartografar o ontem como se ele ainda estivesse aqui. É pai, é terapia holística de meditação no Oriente, é trava no pescoço, é TV Globo, é desapego... é tudo, sobretudo uma certa certeza de que a vida lhe esteve (e está) aí, em seus 60 vicejantes anos, para ser vivida, e do modo mais vívido. Metáforas finas ("Quando a besta se irrompe"), ironias ("Eu sempre chorei na hora errada") e simpatias ("O urro só vem com o reviver da emoção") servem de diapasão a uma narrativa de pretéritos imperfeitos ou mais que perfeitos, sob sinais de alertas. Por vezes, a atriz e dramaturga utiliza sua escrita-aríete para uma reflexão política, num levante contra o feminicídio, ao levantar a relevância de termos mais mulheres em posições de comando na sociedade atual. Por vezes, ela utiliza esse delicado "soluçário" sem choro como um inventário de cicatrizes - "Minha maior construção foi a morte" - sobretudo narrando um périplo suicida da figura paterna, descrita em detalhes quase documentais. A direção de Rodrigo Portella valoriza esses abismos com sabedoria, escarpando uma geografia de um existencialismo íngreme. Maitê é envolvida numa iluminação barroca, de chiaroscuros, entre a luz da cena e a luz de um vídeo que é projetado no palco, expandindo volumetricamente as dimensões geométricas daquela experiência catártica, criando um insulamento lírico. Mas há um istmo que nos permite entrar naquela ilha e desbravar as belezas por trás daquele viver, regado pela ebulição de uma escrita que se firmou com o tempo e pelo carisma de uma estrela que desafia rótulos. O que se produz no Teatro Prudential comove, penetra... fica.