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IMS-RJ expõe o viço do filme final de Babenco

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:

Maria Fernanda Cândido e Willem Dafoe em "Meu Amigo Hindu", que abriu a Mostra de São Paulo, em 2015, terá sessão às 18h, desta quarta, no IMS-RJ Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Ao projetar "Meu Amigo Hindu" (2016) nesta quarta-feira, 23 de novembro, às 18h, o Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro (IMS-RJ), na Gávea, sob a curadoria de Kleber Mendonça Filho (diretor de "Aquarius"), presta um bem-vindo tributo a Hector Babenco (1946-2016), ao jogar uma nova luz sobre seu filme de despedida. Seu testamento. Algo confessional e devastador. Nenhum "obrigado" é suficiente para dar conta do empenho que a viúva do cineasta, a atriz e diretora Barbara Paz, vem fazendo para manter viva a sua memória, vide o documentário que deu a ela um prêmio da mostra de clássicos do Festival de Veneza, em 2019. Mas o aporte do IMS ajuda a potencializar esse trabalho. Há algo de místico nesse longa a ser exibido esta tarde em um tributo póstumo a Babenco. Perpétuos, Morte e Delírio compartilham a mesma inicial - a letra "D" - quando escritos em inglês, o idioma de "Meu Amigo Hindu". Esses verbetes viram Death e Delirium quando ditos por bocas como a do americano Willem Dafoe, ator a quem o cineasta confiou o protagonismo deste seu derradeiro filme. Ele inclusive ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Montreal por seu desempenho. Mas, fronteiras linguísticas à parte, essas duas palavras míticas - onipresente nos filmes de Babenco - se conjugam no esperanto da dor dicionarizado pelo diretor ao longo de 124 minutos esculpidos com suas entranhas e suas recordações mais íntimas. É uma radiografia da alma do homem que, em 1986, concorreu ao Oscar de melhor direção por "O Beijo da Mulher-Aranha". O importante agora é saber o que o cinema fará com ela. Saber que conexões traçar com a filmografia de seu criador e de outros com quem ele dialoga. Pois o que ele fez foi uma autopsia em corpo vivo. Filmes sobre calvários de saúde já fizeram a roda do cinema andar algumas vezes. Foi o que se viu quando, em 2005, o romeno Cristi Piu lançou "A Morte do Sr. Lazarescu", seguindo um idoso em deterioração. Há uma patologia igualmente incômoda no francês "Abus de Faiblesse", de Catherine Breillat, no qual a diretora espelha no corpo da diva Isabelle Huppert o derrame que sofreu. O que se deteriora em "Meu Amigo Hindu" é o organismo de Diego Fairman, cineasta vivido por Dafoe (numa atuação visceral), em função de um linfoma. A doença foi a mesma que botou Babenco em estado de risco nos anos 1990: logo no início do longa, uma cartela de texto indica que as experiências ali narradas foram testadas na pele do próprio Babenco. Fala-se, por isso, que Diego é seu alter ego. Mas é tolice reduzir o filme a esse âmbito autobiográfico. Não importa o que se deu na vida de Babenco. Importa sim o que esse novo espelha de sua obra, de sua cinematografia.

 Foto: Estadão

Por isso, vale retomar como bússola nossos Perpétuos Morte e Delírio, inteligíveis em qualquer língua. Em todos os filmes feitos pelo cineasta em seus 41 anos de caso com a ficção, eles estão presentes, desde seu primeiro longa, "O Rei da Noite" (1975), no qual o protagonista sonhava uma vida alternativa para se entorpecer de seu crime. Basta lembrar que Molina (William Hurt), de "O Beijo...", inventava um mundo paralelo com os cacos dos clássicos do cinema a que assistiu para não se sufocar com a cadeia. É da boca de "O Beijo..." que Babenco vai buscar a saliva para umedecer o relato da luta de Diego para viver. De solidez invejável como drama, "Meu Amigo Hindu" caminha a partir de sequências entre o tormento e a bonança: algumas que doem, outras que aliviam. A festa de casamento de Diego e Lívia (Maria Fernanda Cândido) e o ajuste de contas entre ela e o cunhado Antonio (Guilherme Weber) tateiam a laje do desastre iminente, deixando na plateia a sensação de uma erupção de rancor a qualquer instante: o que eleva a temperatura e o senso de risco. Já as cenas todas nas quais Diego lida com o menino indiano que dá nome ao filme (vivido por Rio Adlakha) caminham pela planície do lirismo, para dar de comer à porção delirante que alimenta a fauna do cineasta. Há ainda as tomadas de excelência com "E" maiúsculo nas quais o genial ator mineiro Selton Mello põe o longa no bolso contracenando com Dafoe de igual para igual na pele de um sujeito misterioso, chegado de um Além ateu, com quem Diego joga xadrez em alusão ao cult dos cults "O Sétimo Selo" (1957), de Bergman. Aliás, alusões cinéfilas o filme tem de sobra, algumas conscientes, como na cena em que Babenco veste um corpo feminino com saudades de um musical clássico. E há as inconscientes: o filme tem um odor de morte que lembra "Trinta Anos Esta Noite" (1963), de Louis Malle. Nessa mescla, entre o que foi sabido e o que é intuído, conta mais uma epiderme em tons de marrom e vinho, as cores primárias do alfabeto plástico de Babenco, na qual o cineasta cobre cada plano, de modo a traduzir em imagens o quão rascante é o espírito de seu personagem. Num elenco estrelado, Babenco rende loas ao melodrama e à comédia burguesa, mas, com a atriz Bárbara Paz, ele dá ao terço final um fôlego digno dos grandes romances de Kim Novak. Magistral, Bárbara faz lembrar Novak no melhor de si em "Férias de Amor" (1955). A arte desse personagem, Diego, defendido com fibra por Dafoe, vira um amalgama com a arte de Babenco. Diego não é Babenco. Diego é um além-Babenco: personagem dos grandes que fica para o cinema brasileiro como uma aula de autogeografia: a partir dele, fala-se do relevo que nossa cinematografia criou e consumiu a partir dos filmes que o argentino rodou de "Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia" (1977) para cá. A partir dele, "Meu Amigo Hindu" vem dizer que Babenco é eterno. E o IMS vem confirmar isso com sua afinada programação. Vale lembrar que, em 2023, estaremos comemorando os 20 anos de "Carandiru" (2003), com o qual Babenco vendeu 4,7 milhões de ingressos.

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