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Por um fio

Das histórias enredadas na indústria da moda no Brasil, entre trabalhadores imigrantes e marcas milionárias

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Suor. Trabalhando 14h por dia, costureiros ganham R$ 3 por peça Foto: MÁRCIO FERNANDES/ESTADÃO

Despertou às 6h30, como sempre. Era uma quarta-feira qualquer. Fez empanadas para o café, vestiu camiseta listrada lilás, legging preta, óculos com hastes de oncinha e, a passos arrastados, caminhou quatro quadras, como sempre, para a labuta. Entre linhas, fitas e etiquetas, trabalhou das 7h30 às 21h30 na oficina de costura numa pequena travessa da movimentada Rua José Paulino, Bom Retiro – um beco sem saída. De olhos castanhos, pele morena e longos fios castanhos com luzes levemente avermelhadas, Maria (nome fictício) trocou La Paz por São Paulo em 2010 – “sem pensar duas vezes” e talvez sem imaginar que ficaria enredada no endereço de sempre. Um beco sem saída.

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Na casinha branca trabalham dez bolivianos, divididos em duas oficinas “independentes”. No primeiro pequeno quarto, há três máquinas de costura ativas e uma parada, milhares de retalhos espalhados no piso de madeira, muito pó, papéis rasgados, lixo varrido para os cantinhos, fitas amarelas, fios elétricos enrolados, etiquetas Limelight, um rádio YP-63, um relógio e um calendário cravados nas paredes descascadas. Com vista para uma árvore esquecida, com flores vermelhas murchas, e uma bicicleta enferrujada, a janelinha cinza mal alivia o ar impregnado pelo cheiro de lentilha, óleo e temperos cozinhando no fogão – alivia apenas a voz de Shakira na rádio boliviana ligada num smartphone. Ali Maria passa 14 horas de seu dia, de segunda a sábado e às vezes aos domingos. Noutros tempos, ganhava R$ 800 por mês. Agora, ganha R$ 3 por peça – uma peça lhe consome cerca de 4 horas de trabalho. De costas arqueadas e dedos inquietos, manejando tesouras e quinquilharias, Maria tem voz tímida e mínima, quase engolida pelo som das máquinas e da música. Não sorri muito. Mirava os olhos puxados na Overlock, enquanto deslizava um tecido colorido para passar a linha, seguindo à risca as determinações da peça piloto de uma marca paulistana.

Aos 21, Maria decidiu deixar La Paz. Terminou o colegial, desistiu da oficina onde lapidava bijuterias e da ideia de universidade. Quis arriscar, “pois era solita”, a caçula da família, sem namorado, marido, filhos. Economizou US$ 200 para pagar a travessia. Agora divide um pequeno apartamento com quatro famílias no Bom Retiro. “Vi a cor do dinheiro e decidi ficar no Brasil. É mais do que ganhava na Bolívia. Queria voltar, mas... É tão difícil. Trabalho demais, mas o dinheiro nunca é muito. Trabalho mais e o dinheiro nunca dá”, disse, voz diminuta, encolhendo os ombros, no nosso primeiro encontro. “É 6 de agosto, Dia da Independência da Bolívia. Onde queria estar? Outro lugar. Queria que fosse um dia feliz. Mas meus dias são todos iguais.”

Enquanto Maria costurava numa manhã de novembro de 2013, a advogada Tatiana Leal Bivar Simonetti, do Ministério Público do Trabalho, tocou a campainha noutro canto, na Rua Cristina Tomás, Bom Retiro. A procuradora procurava. Ao lado do bar do Corinthians, encontrou nos predinhos despedaçados duas oficinas clandestinas ocupadas por bolivianos e paraguaios. Entre botões da marca M.Officer, instalações elétricas inadequadas e máquinas vacilantes, a única janela do prédio estava tapada, cobrindo a vista da rua. Ali os imigrantes trabalhavam das 7h às 22h, remunerados por peça, na mesma linha de Maria. 

Seis meses depois, Tatiana bateu à porta da Rua Cardeiro, Vila Santa Inês, uma discreta casinha de tijolo à vista, onde foram encontrados outros seis trabalhadores bolivianos costurando numa oficina nos fundos. Ali trabalhavam diuturnamente, entre fios elétricos, inseticidas e botijões estocados juntos, além de linhas, etiquetas e aviamentos da M.Officer por todos os lados, com instruções e diretrizes sobre alinhamento, corte e tamanho para um blazer “art nouveau” e uma calça “chamois”, com uma etiqueta verde “aprovado-M5”. Era a casa do boliviano Iver Ávila Rosado, que, noutro dia, vestindo camiseta azul e moleton, abriu-me as portas da oficina interditada. “M.Officer? Só fizemos umas duas ou três vezes para eles. Já fizemos muito para Animale, Carmim e Cori. Tudo nos conformes.” Na letra da lei, porém, o que se passa nessas oficinas leva outra etiqueta: trabalho escravo. “É o modus operandi de diversas marcas: uma cadeia produtiva pulverizada e irregular, em que oficinas clandestinas mantêm trabalhadores migrantes em condições subumanas, com jornadas exaustivas e absoluta sonegação de direitos”, define a procuradora.

Recifense, 35 anos, olhos castanhos e chanel castanho claro, Tatiana Simonetti usava um vestido preto de bolinhas brancas da marca Alphorria e sapatilhas de oncinha no dia 7 de agosto, quando foi convocada para uma reunião sobre o primeiro flagrante de imigrantes haitianos numa oficina de costura no centro de São Paulo. Entre outros casos, ao lado de outros procuradores do Ministério Público do Trabalho e auditores do Ministério do Trabalho e Emprego, Tatiana se dedica desde novembro a um inquérito civil contra a M5, das grifes M.Officer e Carlos Miele. “Se gosto de moda? Sim, gosto. Mas é frustrante. Envolvida nessas investigações da indústria têxtil, minha questão é… de onde vem? Que idiotas nós somos, pensando que estamos comprando uma marca x porque traduz uma ideia de mulher moderna e jovial – quando, na verdade, vem de um sistema de suor, uma modalidade de produção da indústria da moda ancorada na extensão irregular da produção, envolvendo trabalhadores explorados em jornadas árduas e condições degradantes, recebendo ‘quase nada’”, alfineta. “No fim, você não compra uma roupa, mas uma história. Caímos nesse conto de que uma peça traduz um estilo. Mas precisamos cair na real: a moda é um mercado de ilusões.”

Desenrolando o fio do novelo: segundo as investigações, a M5 encomenda peças para oficinas “intermediárias”, que encaminham uma peça piloto e o pedido de confecção nos mínimos detalhes (cor, estilo, tamanho, botões e etiquetas personalizadas, prazo e valor unitário) para oficinas menores – na maioria, de imigrantes. Depois de prontas, as peças são conferidas, embaladas e encaminhadas para a M5. Nesse nó cego, a tal calça “chamois” ilustra os diferentes valores agregados ao longo da cadeia produtiva: o costureiro Wilber Sánchez ganhou R$ 4 por peça; o oficineiro Iver Ávila Rosado, R$ 13; o “intermediário” Empório Uffizi, R$ 52. Nas vitrines da M.Officer, o look pode custar por volta de R$ 290. 

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Enquanto Maria costurava no dia 13 de maio, data simbólica de nossa Lei Áurea, Tatiana visitou outros três endereços envolvidos com a M.Officer, também descobertos pelo serviço de inteligência da Receita Federal, cruzando informações e notas fiscais relacionadas à M5. Queria mostrar que não eram dois casos isolados de confecções clandestinas – “mas 3, 4, 5, talvez 10, 20, 25”. Passou por uma oficina no Jardim Belém e outras duas no Bom Retiro – a última parada, uma casa vizinha à da oficina de Maria. Maria e Tatiana estavam lado a lado, mas não se cruzaram. Na casinha simples da Confecções Winston foram flagrados bolivianos e paraguaios arrematando aviamentos e cós para as marcas do estilista e empresário Carlos Miele, que contava 146 lojas espalhadas pelo Brasil em 2009, com faturamento na época estimado em R$ 320 milhões. Atualmente, o designer se divide entre São Paulo, Nova York e Florianópolis. 

O caso se destacou, pois a M.Officer foi uma das poucas grifes investigadas que se recusaram a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), negando absolutamente a relação de trabalho escravo com seus looks. Tramita agora uma ação civil, em que o Ministério Público pretende abolir a grife de São Paulo, implicando ainda multa de R$ 10 milhões para a marca. Em nota, a M5 afirma que, na sua relação com a Empório Uffizi, consta uma cláusula que expressamente proíbe a subcontratação de outros fornecedores. “A M5 está tomando medidas judiciais contra os responsáveis e trabalhará ombro a ombro com o Ministério Público do Trabalho e Ministério do Trabalho e Emprego para elucidar os fatos”, diz o comunicado oficial. 

Pequeno galpão na Rua Javaés, Bom Retiro, a Empório Uffizi presta serviço para diversas marcas, com um quadro enxuto: um costureiro, duas modelistas, dois piloteiros, três cortadores, um responsável por etiquetas, seis responsáveis por arremates. “A marca contrata uma intermediária com poucos profissionais na produção. Como essa equipe pode produzir, digamos, 3 mil peças em 2 meses, para abastecer as unidades da M.Officer no país inteiro? É humanamente impossível. Isso é cegueira deliberada da ré”, argumenta Tatiana. 

Enquanto Maria costurava no dia 20 de agosto, o advogado Renato Bignami esperava a audiência aberta na CPI do Trabalho Escravo, no Palácio 9 de Julho, Ibirapuera. Ali deveriam prestar depoimento os representantes legais das marcas Collins e Pernambucanas – que não compareceram. Moreno alto de olhos azuis, 44 anos, Bignami vestia terno preto, gravata lilás e camisa branca – o terno, encontrado num brechó na Inglaterra, “um tal de Limehouse, não é grife; gosto de roupa antiga, aliás”. Coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo, o auditor liderou diversos inquéritos e investigações de marcas como Gregory, Zara, Collins, Les Lis Blanc, M.Officer, Pernambucanas. “No Brasil, o trabalho escravo urbano é relativamente novo. Passamos a investigar a partir de 2007, tentando compreender esse fenômeno na indústria têxtil. Esses casos não são pontuais. O trabalho escravo se tornou uma questão crônica no setor”, comenta. “Avançamos muito, mas uns bons milhares de trabalhadores ainda estão aí, amarrados a esse sistema. São bolivianos, paraguaios, peruanos e, agora, haitianos.” 

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Maria parou de costurar por uns minutos, na quinta, nosso último encontro. Vestia outra camiseta listrada e jeans preto. Diz não se importar com etiquetas e grifes, a ponto de não lembrar para quais já costurou. Mas gosta de costurar as próprias roupas – como a camiseta do dia. Voz hesitante, entre o espanhol e o portunhol, encolhia os ombros ao parar para pensar: “Tempo? Não tenho. Não tenho tempo livre. Trabalho o dia inteiro e, à noite, estou esgotada. Até pensei em estudar, moda talvez, mas não tenho nem tempo nem dinheiro.” É feliz? “Só com mi novio”, diz, sorrindo para Jhon Jorge, boliviano de 21 anos, também trabalhador da oficina. “Às vezes fico chateado, né? Às vezes a gente quer sair, mas não dá. A gente precisa trabalhar”, diz Jhon, vestindo jeans Hoolister e camiseta vermelha, inquieto com os pés na cadeira de almofadinha azul, inquieto com as mãos na Overlock. 

– Maria, você sente que seu trabalho é valorizado?

– Valorizado? Não sei… Talvez? Talvez sim? Não sei o que é “valorizado”.

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– Mas sente que seu trabalho oferece condições justas?

– Justo? Não sei se sei o que é “justo”. 

– Se você pudesse mudar sua vida, o que mudaria?

– Tipo sonho? Não sei… Queria voltar a tempo de rever meus pais. Eles têm uns 80 anos, tenho medo de não reencontrá-los. 

Do lado de fora da oficina, Maria olhava para o alto, tentando alinhavar lentamente suas ideias: “Mira, ouvi dizer que numas oficinas há gente escravizada. Mas na minha não é assim. É tudo tranquilo, tranquilo. Não posso perder esse trabalho. Se perdesse, aí sim teria uma história ainda mais triste pra contar…”.

Aos olhos da lei e dos direitos humanos, a história é outra. “É uma situação delicada, pois muitos trabalhadores não veem que foram tragados por um sistema perverso. Os direitos sociais trabalhistas são fundamentais, não se pode abrir mão deles. Não posso dizer ‘ok, quero trabalhar gratuitamente ou quase gratuitamente por mais de 12 horas e sem carteira assinada, sem férias nem nada’. A questão é que as empresas exploram esse medo dos imigrantes, muitos clandestinos, de não encontrarem outro trabalho noutra oficina, mesmo nas péssimas condições presentes”, diz Tatiana Simonetti. “São seres humanos vulneráveis. Receber por peça cria um ciclo vicioso, pois os trabalhadores se submetem, querem produzir mais e mais por valores muito aquém do razoável – e não vislumbram que, trabalhando num ritmo ‘normal’, eles poderiam e mereceriam receber um salário digno. Assim, esses imigrantes se tornam fantasmas no nosso país. Eles não estão acorrentados, mas não têm liberdade. Ficam tão encurralados que perdem a ideia de dignidade humana. Perdem a perspectiva. É preciso ter muita sensibilidade, pois eles não estão nessa situação porque querem”, arremata.

De braços cruzados, Maria agora fita o chão, observando os lentos movimentos dos próprios pés. “Que quero? Na verdade, não sei.” Sorriu timidamente, virou as costas e voltou a costurar. 

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