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‘Choque liberal’ de Guedes fica no papel

Razões vão da falta de respaldo do presidente Bolsonaro a promessas exageradas, dizem analistas

BRASÍLIA - "E nós vamos na direção da liberal democracia, nós vamos abrir a economia, nós vamos simplificar impostos. Nós vamos privatizar, nós vamos descentralizar os recursos para Estados e municípios.” As promessas feitas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, em seu discurso de posse (ler abaixo) no dia 2 de janeiro de 2019 arrancaram palmas da plateia. Um ano e meio depois, porém, o “choque liberal” prometido ficou apenas no papel.

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Apesar de ter usado o termo “liberal” oito vezes naquele dia, houve poucos avanços nesse sentido. Dos três pilares anunciados para a liberalização da economia – reforma da Previdência, tributária e privatizações –, apenas a mudança nas aposentadorias foi para frente, ainda assim sem a capitalização (espécie de poupança que o próprio trabalhador faz para assegurar a aposentadoria no futuro) defendida pelo ministro.

Nesta semana, depois de muito atraso, Guedes enviou ao Congresso apenas a primeira parte de sua reforma tributária. Se no discurso chegou a falar de unificar “sete, oito impostos ”, o projeto apresentado juntou apenas o PIS e a Cofins (uma ideia há muito estudada na Receita Federal) e criou a Contribuição Social sobre Operação com Bens e Serviços (CBS)  “Guedes segue o padrão Bolsonaro. Não faz muita coisa. Tem muita espuma, mas não tem muito resultado”, disse o economista Simão Davi Silber, professor da Universidade de São Paulo (USP).

Promessas liberais de Paulo Guedes não saíram do papel: falta respaldo do presidente ou foram exageradas. Foto: Dida sampaio/Estadão

Especialistas ouvidos pelo Estadão citaram, entre as razões para a falta de avanço das propostas mencionadas por Guedes, demora na formulação de medidas, falta de articulação política e criação de expectativas sem lastro na realidade provocada por promessas do ministro. 

Além disso, a dificuldade de emplacar a agenda expõe um conflito que é marca do governo. Os planos liberais vão de encontro às ideias da ala militar, que defende o aumento do investimento público, a manutenção das estatais e medidas protecionistas para a indústria nacional. Some-se a isso a dificuldade em aprovar projetos no Congresso por falta de uma base forte e fiel – o que impediu a aprovação do modelo de capitalização da Previdência, por exemplo. Por fim, embora o presidente Jair Bolsonaro diga que Guedes tem carta branca na economia, na prática, o próprio presidente veta o avanço de alguns temas, entre eles a privatização do Banco do Brasil.

Para o diretor-executivo do Instituto Livres, Paulo Gontijo, falta respaldo político para Guedes tocar a agenda liberal. “Esse governo tem um problema de formulação, de articulação e de execução. A formulação da reforma tributária foi ruim. Na votação do Fundeb, a articulação foi ruim. Quanto tem proposta bem formulada, como a reforma administrativa, não anda porque enfrenta corporações”, analisa.

‘Custo Brasil’ tem colaborado pouco para a abertura econômica

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A prometida abertura econômica, que seria concomitante à redução do chamado “custo Brasil”, também ainda não teve avanço. Foram feitas reduções pontuais em taxas de importação, que não precisam de aval do Mercosul. Mas os planos de reduzir a Tarifa Externa Comum (TEC) do bloco não foram para frente e ficou ainda mais difícil levá-los a cabo com a pandemia, que teve grande impacto na indústria brasileira. 

Especialista em Economia Internacional, Silber lembrou que mesmo o maior feito na área externa, o acordo entre Mercosul e União Europeia, fechado em meados de 2019, corre risco de naufragar em função da imagem negativa do País na área de meio ambiente. “Além disso, dada a influência militar dentro do governo Bolsonaro, há uma visão nacional desenvolvimentista que é contra esse discurso de abertura”, afirma Silber. “Existe um conflito latente, dentro do próprio governo, e o Guedes têm sido muito tímido.”

Além da Previdência, um dos pontos em que houve avanços na liberalização da economia foi a chamada lei da liberdade econômica, que reduziu burocracias, como a necessidade de alvarás para funcionamento de lojas. Os economistas ouvidos pela reportagem, porém, consideram esse um ponto lateral na agenda liberal. 

Procurado, o Ministério da Economia disse que a pasta, “sob condução de Paulo Guedes, vem concebendo e colocando em prática, desde o início do governo do presidente Jair Bolsonaro, iniciativas voltadas a assegurar o conjunto de reformas essenciais para a retomada do crescimento da economia”.  Segundo o ministério, ações e programas “robustos” foram implementados em diversas frentes. A pasta listou medidas como a reforma da Previdência, o acordo Mercosul/UE, a medida provisória da liberdade econômica, acordo para a abertura do refino e o prometido choque da energia barata. A Economia também destacou o lançamento da Carteira de Trabalho Digital e a digitalização de serviços públicos entre as ações feitas pelo ministério.

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Discurso de posse

Gastos públicos“O descontrole sobre a expansão de gastos públicos é o mal maior. (...) O Brasil foi corrompido pelo excesso de gastos e o Brasil parou de crescer pelo excesso de gastos.” Apesar do diagnóstico, o governo de Jair Bolsonaro não conseguiu estancar os gastos públicos. Após Guedes sinalizar que seria possível zerar o déficit primário ainda em 2019, o rombo no ano passado foi de R$ 95 bilhões. Com a pandemia, ele deve saltar para R$ 800 bilhões em 2020.

Reforma da Previdência“O primeiro pilar eu disse que é a reforma da Previdência. (...) Se a gente aprovar uma reforma importante como essa que está à frente, nós temos aí dez anos de crescimento à frente garantidos. (...).” A reforma da Previdência foi aprovada em 2019. O texto já vinha sendo discutido no governo Temer e a capitalização, defendida por Guedes, não passou no Congresso Nacional. Antes mesmo da pandemia, no entanto, já estava claro que a economia ainda teria dificuldades. Após o PIB ter crescido cerca de 1% em 2017, 2018 e 2019, o mercado financeiro projetava, em fevereiro, crescimento de pouco mais de 2% este ano. Com a pandemia, a projeção já é de queda de quase 6%. 

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Privatizações“O segundo pilar são as privatizações aceleradas. (...) Nós vamos vender ativos, desacelerando a dívida talvez controlemos nominalmente essas despesas. (...) O Salim (Mattar, secretário de Desestatização) vai entrar e vai anunciar logo: ‘Vou fechar o trem-bala, vou vendas tantas, todo mundo tem meta, todo mundo vai correr atrás’.” Nenhuma estatal federal de controle direto foi privatizada ou liquidada, pelo contrário. O governo Bolsonaro criou uma nova estatal, a NAV, responsável pela navegação aérea A estatal do trem-bala, citada por Guedes no discurso de posse, não só não foi vendida, como teve sua manutenção garantida pelo ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas.

Reforma tributária“O terceiro pilar: Marcos Cintra (ex-secretário da Receita Federal). A simplificação, redução e eliminação de impostos. O Marcos tem um programa, inclusive, onde você vai pegar esses 7, 8 impostos (PIS, contribuição social, passa por IPI). Junta isso tudo num único imposto federal. (...) Olhando lá para frente, o ideal é que tivéssemos 20% do PIB como carga tributária, acima disso é o quinto dos infernos, Tiradentes morreu por isso.” O governo enviou apenas a primeira parte de sua proposta de reforma tributária na terça-feira passada, mais de um ano e meio após a posse de Guedes. Nela, há apenas a unificação do PIS/Cofins. Em 2018, a carga tributária bruta (CTB) do governo geral havia sido de 33,15% do PIB. Em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, ela foi de 33,17%. Marcos Cintra foi demitido do cargo de secretário da Receita Federal em 11 de setembro do ano passado, por defender a adoção de um imposto nos moldes da extinta CPMF. Atualmente, Guedes voltou a citar abertamente a adoção de um “imposto sobre pagamentos”, semelhante à CPMF. 

Reforma administrativa“Evidentemente, temos de fazer uma reforma administrativa e a turma do Planejamento está de olho nisso, o pau está comendo lá. Mas nós vamos buscar o boi na sombra.” A equipe econômica chegou a elaborar uma proposta de reforma administrativa, que ainda não foi enviada ao Legislativo. Com a pandemia, o governo permitiu que os salários e a jornada de trabalhadores da iniciativa privada fossem reduzidos pelas empresas. Servidores públicos não foram atingidos. No Congresso, chegou a surgir um movimento para permitir o corte salarial de servidores durante a crise. O governo foi contrário. Guedes defendeu apenas o congelamento de salários dos servidores até o fim de 2021, sem nenhuma redução. 

Crédito“Nós vamos desestatizar o mercado de crédito. Se houver crédito, que seja o microcrédito e mesmo assim será que precisa do banco público para isso? Não foi por microcrédito que os bancos públicos se perderam. Eles se perderam nos grandes programas onde piratas privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano político se associaram contra o povo.” Os bancos públicos – em especial, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil – continuam exercendo papel de destaque no mercado de crédito. Na pandemia, os bancos públicos ganharam ainda mais importância, com a Caixa sendo a responsável pelo pagamento do auxílio emergencial e BNDES e BB lançando linhas de crédito para empresas e pessoas físicas, inclusive com subsídios do Tesouro Nacional.  * Formulação: Estadão/Broadcast, com dados de Ministério da Economia, Tesouro Nacional, Banco Central e BNDES

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