Se o setor imobiliário tivesse de escolher uma palavra para se lembrar de 2015, ela certamente seria “distrato” – jargão usado pelas empresas, e agora também conhecido dos consumidores, para devolução de imóveis comprados na planta. Esse foi o pesadelo de incorporadoras e proprietários de imóveis novos no ano passado, quando o setor registrou recordes históricos no volume de devoluções. O levantamento recente da agência de classificação de riscos Fitch, com nove companhias, mostra que, de cada 100 imóveis vendidos, 41 foram devolvidos de janeiro a setembro de 2015. Isso significa quase R$ 5 bilhões de volta às prateleiras das grandes empresas.
“Historicamente, o porcentual de distratos girava em torno de 10%, um patamar saudável para a indústria”, diz Meyer Nigri, fundador da Tecnisa e vice-presidente da Abrainc, associação que reúne as 18 maiores companhias do setor. Os distratos sempre existiram, mas eram exceção, pois o comprador que decidia se desfazer de uma unidade até a entrega das chaves em geral conseguia negociá-lo com outro interessado por um valor maior do que tinha desembolsado até ali.
Agora, vender “por fora” significa perder dinheiro, já que o preço do imóvel está em queda e as incorporadoras estão cheias de unidades para desovar. “Antes, o consumidor comprava um imóvel por R$ 100 mil na planta, vendia por R$ 150 mil e embolsava a diferença”, diz um executivo de uma grande construtora. “Agora, compra por R$ 100 mil, mas descobre, na entrega das chaves, que a incorporadora está vendendo por R$ 80 mil. É difícil sustentar o mercado assim.”
Essa é apenas uma das faces do problema. A outra, que também se agravou com a deterioração econômica, é a restrição ao crédito. Conseguir um financiamento no banco está cada vez mais difícil. No mercado imobiliário, esse é um momento crucial, porque a venda só se concretiza na entrega das chaves: é quando o cliente da incorporadora passa a ser cliente do banco, ao assumir um financiamento, e a empresa recebe o valor integral do imóvel. A alta da taxa de desemprego, para quase 8,5% no ano passado, atravancou esse processo. Quem perdeu o emprego ou viu sua renda cair entre a compra do imóvel e a entrega das chaves tem grande chances de ter o financiamento negado pelo banco.
Antes que isso acontecesse, muita gente se antecipou. Foi o caso do aposentado Flávio Atorre de Mello, de 63 anos. Quatro meses depois de comprar um apartamento na planta, em novembro de 2012, ele foi demitido da emissora de TV onde trabalhava como gerente de operações. De lá para cá, a Selic, taxa básica de juros da economia, passou de 7,25% para 14,25%. “Quando fechei o negócio, minha ideia era pagar o máximo possível até as chaves e depois quitar o restante com meu apartamento antigo”, conta. “Mas deu tudo errado: o valor que faltaria pagar na entrega, em julho deste ano, seria de R$ 700 mil, bem mais do que vale meu apartamento, que não se valorizou e custa hoje R$ 500 mil.”
Sabendo que o financiamento seria inevitável e que sua renda não passaria pelo crivo do banco, Mello decidiu, em julho passado, devolver o imóvel à incorporadora. Foi lhe apresentaram o jargão “distrato” e os transtornos que estão por trás dele. Descontadas as taxas de corretagem, comercialização e despesas administrativas, a empresa propôs devolver R$ 40 mil dos R$ 200 mil que Mello pagou nos últimos três anos. O caso foi parar na Justiça. Hoje, Mello vende peças de motos pela internet para conseguir uma renda extra, e já convenceu a mulher de que a mudança de apartamento não virá tão cedo. “Difícil é passar todos os dias na frente do prédio, que fica a 500 metros de onde moro hoje, e lembrar que nada do que sonhamos vai se concretizar.”
Disputa. Casos como esse se multiplicaram no escritório do advogado Marcelo Tapai, que se especializou no segmento imobiliário. No ano passado, das 725 ações movidas por ele, 73% eram referentes a distratos. Em 2014, o porcentual foi de 43%. O embate entre clientes e incorporadoras está sendo levado à esfera judicial porque não há uma regulamentação específica sobre a devolução de imóveis no Brasil.
De um lado, as empresas se valem do que diz a Lei de Incorporação: “O contrato de compra e venda de uma unidade é irrevogável e irretratável”. Do outro, quem defende o direito ao distrato recorre a uma regra geral do Código de Defesa do Consumidor, que trata como abusivas as cláusulas que colocam o cliente em desvantagem exagerada. “Essa é sem dúvida a hipótese em questão”, diz o Idec, em nota. “Já que o fornecedor, além de ficar com o imóvel, ainda terá em mãos todo o valor pago pelo consumidor, essa situação caracteriza-se um verdadeiro enriquecimento sem causa, proibido pela legislação.”
As decisões, em geral, favorecem o consumidor. A Justiça tem concedido o direito de restituição entre 70% a 90% do que foi pago, com correção monetária. A retenção de 10% a 30% do valor pela companhia é para compensar despesas como publicidade, corretagem e elaboração de contratos. “Ninguém compra um imóvel pensando em devolver”, diz Tapai. “Quem busca essa opção ou está desesperado ou se deu conta de que fez um péssimo negócio.”
As incorporadoras estão em pânico. Principalmente porque as sucessivas perdas nos tribunais coincidem com uma das crises mais graves do setor. Segundo Meyer Nigri, a Tecnisa terminou o ano com uma média de dez devoluções por dia útil. “Chegamos ao ponto de distratar o mesmo imóvel nove vezes, o que é uma aberração.” A empresa teve de destacar uma equipe só para cuidar desses casos. Ainda assim, o número de distratos aumentou 46% no terceiro trimestre do ano passado, na comparação com 2014. As desistências fizeram as vendas líquidas caírem de R$ 306 milhões para R$ 135 milhões no período.
Na Rossi, o tema é tão sensível que o time criado para combater os distratos foi batizado de Swat, como a divisão de elite da polícia americana. Em 2015, até setembro, a incorporadora, que é uma das mais endividadas do setor, conseguiu reduzir os distratos para R$ 775 milhões, de R$ 990 milhões, em 2014.
Assim como as concorrentes, a Rossi tem se desdobrado para evitar os distratos. Entre as alternativas, as empresas estão oferecendo financiamento direto, troca por um imóvel mais barato e descontos. “Antes, o tema era tratado como exceção. Criamos uma área específica para que não vire regra”, diz Fernando de Mattos Cunha, diretor financeiro da Rossi.
Em paralelo às soluções caseiras, o setor começou a se articular para definir regras que não afetem suas finanças. “Estamos em contato com o Ministério Público e com órgãos de defesa do consumidor para encontrar uma solução”, diz Nigri. O argumento das empresas é de que, ao devolver uma unidade, o consumidor coloca em risco a conclusão do empreendimento, podendo prejudicar outros compradores. “Não é só a visão do consumidor que está em jogo, mas o contrato de um bem que não está dissociado do resto e compromete outras famílias”, defende Eduardo Fischer, diretor da MRV.
Com as empresas segurando os lançamentos, a tendência é que o número de entregas e, consequentemente, de distratos, caia nos próximos anos. Em 2016, no entanto, vai persistir. O relatório da Fitch estima que, se 35% das unidades vendidas forem canceladas, os distratos chegariam a R$ 6 bilhões entre as principais empresas do setor.
Expectativa. A dificuldade dos consumidores de pagar o imóvel novo também mudou a rotina de antigas conhecidas do mercado imobiliário: as empresas de leilão. Nos últimos dois anos, elas viram o número de unidades retomadas por bancos mais que dobrar, embora as vendas tenham permanecido no mesmo patamar. Pelo menos, por enquanto. Isso porque as instituições financeiras tomaram mais imóveis de clientes inadimplentes, mas ainda estão tentando recuperar a totalidade da dívida. A expectativa dos leiloeiros e dos investidores é que até o fim deste semestre, as instituições financeiras comecem a revisar para baixo os preços mínimos pedidos nos leilões.
Em 2015, a Zukerman, com sede em São Paulo e atuação no País inteiro, colocou 4,4 mil imóveis em leilões extrajudiciais – denominados assim porque são tomados pelo banco depois de um período de atraso no pagamento, sem passar pela Justiça, um detalhe que também torna o negócio mais arriscado. Em 2014, eram 3,8 mil e, em 2013, 1,8 mil. Embora a oferta tenha disparado, o volume de negócios fechados manteve-se estável: entre 930 e 950 nos últimos dois anos. “Como há muita promoção de imóveis novos, o preço do leilão ainda não está atrativo. A tendência é que os bancos comecem a ceder”, diz o leiloeiro Mauro Zukerman.
Ainda assim, os leilões têm chamado a atenção de investidores dispostos a tomar risco e conhecedores dos meandros jurídicos desse negócio. Em 2015, o advogado catarinense Jefferson Santana pagou R$ 112 mil à vista por um imóvel que valia R$ 180 mil e ainda estava ocupado. “É preciso estudar muito a oportunidade para não perder dinheiro”, diz. “Se der certo, pretendo comprar um por ano.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.