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Economia e políticas públicas

Opinião|A responsabilidade fiscal cabe ao Congresso?

Economista Samuel Pessoa cobra do Congresso que entregue a Haddad os tributos necessários para equilibrar o fiscal pós mega-aumento de gasto da PEC de Transição, mas ressalva que, com elos entre salário mínimo e aposentadoria e entre saúde/educação e receita, nem assim vai funcionar. É duvidoso que direita no Congresso tenha o dever de apoiar estratégia tão precária.

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Foto do author Fernando Dantas

O economista Samuel Pessôa, do IBRE-FGV e da Julius Baer Family Office (JBFO), vem batendo na tecla de que, na transição do governo Bolsonaro para o Lula 3, o sistema político e a sociedade de certa forma endossaram a visão de que a despesa pública estava demasiadamente arrochada no final do governo Bolsonaro e precisava voltar a crescer.

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É preciso qualificar essa afirmação. O governo Bolsonaro, por ter incluído a pandemia, viu um enorme crescimento de despesas não recorrentes. E,  na fase final eleitoreira do mandato, houve a implantação do Auxílio Brasil e o adiamento de pagamento de precatórios.

Mas Pessoa considera que a série do resultado primário estrutural da Instituição Fiscal Independente (IFI) limpa os ruídos e permite uma visão de como evoluiu a política fiscal recorrente e com os efeitos do ciclo econômico neutralizados.

E, nessa ótica, efetivamente, saiu-se de superávit primário estrutural de, respectivamente, 0,6% e 0,2% do PIB em 2021 e 2022 para déficit de 1,6% em 2023, primeiro ano do Lula 3.

O argumento de Pessoa é que a aprovação pelo Congresso da PEC da Transição (trazendo grandes aumentos de despesa) e a boa aceitação que a emenda teve no sistema político e entre formadores de opinião indicam apoio democrático ao retorno a um nível de gasto federal como proporção do PIB próximo do que prevalecia antes do aperto de Guedes.

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Pessoa frisa que mesmo o candidato Bolsonaro em 2022, ao se comprometer a manter o benefício básico do Auxílio Brasil em R$ 600 (o que significa grosso modo um acréscimo de 1% do PIB ante o Bolsa-Família original), de certa forma caminhou na direção de referendar aumento de gastos como proporção do PIB em 2023.

Dessa forma, na visão do economista, "o Congresso, que endossou o aumento de gasto, deve agora ser solidário com o Executivo na agenda de aumento da carga tributária".

A afirmação é polêmica, claro. Uma outra visão é de que o aumento de gasto foi uma decisão política de um governo de esquerda e que, fora sua base de apoio, não há porque forças de direita do Congresso apoiarem aumento de impostos, que geralmente são mal vistos nesse campo do jogo político.

Mas o próprio Pessoa aponta que, independentemente dessa discussão acima, há outros problemas com a sua visão. Na verdade, a indexação à receita de parte importante do gasto no Brasil, como no caso de educação e saúde, inviabiliza o ajuste pelo aumento da carga tributária. Quando esta sobe, automaticamente parte do gasto também se eleva, anulando boa parte da melhora do resultado primário pretendida.

Outra dificuldade, na visão do economista, é a vinculação do piso previdenciário e de programas sociais como o Benefício de Prestação Continuada (BPC, voltado a pobres que sejam idosos ou com deficiência) ao salário mínimo.

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A própria regra de ajuste do mínimo, pela inflação mais o PIB, é insustentável, na sua análise. Se a ideia de Lula é repartir o aumento de produtividade, muito concentrado no Brasil, entre os menos privilegiados, o indexador do salário mínimo deveria ser o PIB per capita, ou a média ou mediana salarial, que são aproximações da produtividade.

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Mas o maior problema em termos fiscais é indexar benefícios sociais e o piso previdenciário ao salário mínimo, fazendo a despesa obrigatória continuar a crescer acima da discricionária, esta última em níveis cada vez mais críticos.

Para Pessoa, um governo pode querer aumentar o valor real de benefícios previdenciários e sociais em momentos de fartura, mas isso não pode ser feito com um regra que force essa elevação em praticamente todos os anos. No momento atual, fiscalmente problemático, a indexação daqueles benefícios deveria ser somente à inflação.

Em resumo, a visão de Pessoa é de que o Congresso deveria contribuir para a pauta de aumento de tributos do governo, mas essa eventual boa vontade será desperdiçada sem acabar tanto com a vinculação à receita de saúde e educação como com a indexação ao salário mínimo do piso previdenciário e de outros benefícios sociais. Em outras palavras, sem isso o arcabouço fiscal e o plano deste governo de ajuste fiscal gradual não se sustentam.

Uma crítica cabível à posição de Pessoa é que, num governo de esquerda como o atual, a desvinculação de saúde e educação da receita é muito difícil e romper o elo entre o salário mínimo e o piso previdenciário é virtualmente impossível.

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Assim, forças de direita e centro-direita do Congresso dariam ao governo os aumentos de impostos pretendidos, contra a inclinação dos seus eleitorados, mas num contexto em que a estratégia fiscal tem grandes chances de fracassar e o aumento da carga tributária pode ser usado para ampliar ainda mais o gasto público. Parece ao colunista que é pedir um pouco demais.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com)

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 8/5/2024, quarta-feira.

Opinião por Fernando Dantas
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