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Economia e políticas públicas

Opinião|Pastore, mesmo pessimista, nunca desistiu do Brasil

Economista foi pioneiro na racionalidade e na investigação rigorosa dos dados na década de 50, teve breve passagem pelo comando do BC em momento dificílimo, e pregou a sensatez na condução da política econômica toda a sua vida, com algumas brilhantes contribuições.

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O falecimento de Affonso Celso Pastore, ainda em plena e profícua atividade intelectual e profissional, leva à interrogação sobre se o seu esforço de toda uma vida - o de levar racionalidade e respeito aos dados à política econômica praticada no País - teve ou não resultados.

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A metáfora batida do copo meio cheio ou meio vazio certamente se enquadra como resposta àquela indagação. Sim, houve avanço no debate, na formulação e na implementação das políticas econômicas - e públicas em geral - ao longo das últimas décadas, mas claramente o Brasil ainda está muito longe do País que pensadores como Pastore enxergavam como possível.

Na verdade, sem nunca recair no cinismo, o economista demonstrava certo pessimismo nos últimos anos, como fica claro no trecho final da longa entrevista concedida por ele a Ilan Goldfajn (hoje presidente do BID) e a mim no livro comemorativo dos seus 80 anos, publicado em 2020: "A economia com rigor: Homenagem a Affonso Celso Pastore".

Naquele trecho da conversa, Pastore lamenta que, em termos de desenvolvimento, o Brasil tenha deixado passar oportunidades que países como Coreia do Sul e Cingapura aproveitaram, ao ignorar as reformas que tinham que ser feitas para aumentar a produtividade. Assim, o Brasil desperdiçou o "bônus demográfico", fase em que a população que trabalha cresce mais que a população dependente, e agora tem que lidar com o problema de uma conta previdenciária crescente num país que ainda não é rico.

"As reformas hoje são muito mais custosas e muito mais difíceis de ser feitas. Quando isso acontece, estamos condenados a crescer menos do que poderíamos. O potencial do Brasil será permanentemente mais baixo do que seria se tivéssemos feito tudo isso antes. Nós temos um legado negativo em cima da economia brasileira que, infelizmente, é muito grande", concluiu Pastore.

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Em 2021, entretanto, o economista publicou o livro "Erros do passado, soluções para o futuro: A herança das políticas econômicas brasileiras do século XX", que, pelo próprio título, mostra a disposição de continuar lutando por soluções verdadeiras para o problema frustrante do desenvolvimento interrompido do Brasil.

Como seus muitos alunos e admiradores relatam, Pastore foi um dos pioneiros em trazer para o Brasil a ciência econômica baseada em modelos racionais e testes empíricos dos fatos da realidade, no lugar da tradição da "grande narrativa" da história intelectual brasileira, em que os dados surgem apenas no final para, convenientemente selecionados, "comprovarem" a tese nascida de dentro da cabeça do autor.

O laboratório inicial onde germinaram essas sementes de objetividade, racionalidade e reverência aos dados foi, como relata Marcos Lisboa no livro mencionado acima, a Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP) nos anos 50 e 60, liderada pelos professores Alice Canabrava e Luiz de Freitas Bueno. Tanto Pastore quanto Delfim Neto (que levou o primeiro à vida pública, inicialmente como seu assessor na Secretaria da Fazenda de São Paulo, em 1966) são crias daquela fase da FEA/USP.

A experiência na vida pública de Pastore culminou (e se encerrou) com a breve passagem pela presidência do Banco Central em 1983-85, numa fase de inflação de três dígitos e crise aguda de endividamento externo. Para o economista, foi uma experiência frustrante, em que a prioridade de apagar incêndio no setor externo deixou em segundo plano qualquer tentativa de combate mais eficaz à disparada inflacionária.

Com certeza, a experiência da impotência das autoridades econômicas numa conjuntura de caos macroeconômico contribuiu para a ênfase que Pastore deu, na sua volta ao mundo privado da consultoria e da atividade de professor, a políticas prudentes e racionais tanto na área monetária como na fiscal. Apesar disso, ele sempre viu o equilíbrio macroeconômico apenas como uma pré-condição do desenvolvimento sustentado, que exige também microeconomia eficiente, boas instituições, educação de qualidade etc.

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Na verdade, a visão econômica de Pastore, embora seja dominante no establishment financeiro e nas mais respeitadas instituições acadêmicas do Brasil, nunca se tornou verdadeiramente consensual no mundo da política. Ainda hoje, a ala esquerda do PT vê a defesa de responsabilidade fiscal, controle de inflação e liberdade de mercados com boa regulação como uma ideologia "neoliberal", voltada a perpetuar a dominação dos pobres pelos ricos.

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Na prática, porém, como a ação do ministro Fernando Haddad mostra claramente, muitas lições foram aprendidas, como o perigo de descuidar inteiramente das contas públicas e de o Estado intervir maciçamente na economia, como no tempo da nova matriz econômica. O problema, porém, é que esse avanço da racionalidade econômica, mesmo num governo de esquerda, é lento e envergonhado. Cometem-se menos e menores erros, mas se está longe de uma agenda mais ambiciosa que de fato recoloque o Brasil numa trajetória de convergência para o padrão de vida dos países mais avançados.

No final da sua vida, Pastore percebia com clareza o problema desse freio político à agenda econômica tecnicamente correta e possível, do qual provavelmente derivava o seu discreto pessimismo. Mas ele jamais cansou de argumentar em favor do que considerava correto e adequado para o País. Vivo estivesse, provavelmente estaria neste momento discutindo apaixonadamente algum detalhe, correto ou errado, da política econômica em curso.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com)

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 21/2/2024, quarta-feira.

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Opinião por Fernando Dantas
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