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Plástico descartado vira escultura no Pavilhão italiano da Bienal de Veneza

Respondendo à questão 'Como viveremos juntos?', o arquiteto e acadêmico Niccolo Casas cria a obra Plasticidade, abordando a sustentabilidade aplicada à arquitetura

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Em cartaz até 21 de novembro, a 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza – que deveria ter sido realizada no ano passado, mas foi adiada por conta da pandemia – coloca em discussão uma questão atual e que, ao menos aparentemente, ainda permanece em aberto: “Como viveremos juntos?”. Para o curador da mostra, o professor Hashim Sarkis, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), a resposta passa, invariavelmente, pelo respeito à pluralidade. Mas também fala de perto a valores universais, responsabilidade coletiva e consciência ambiental. 

“Estamos fazendo essa pergunta aos arquitetos dos 61 países convidados, porque acreditamos que eles tenham a capacidade de apresentar respostas mais inspiradoras do que as que os políticos têm oferecido. Porque nós, arquitetos, somos permanentemente convocados a moldar os espaços em que as pessoas vivem juntas. E também porque frequentemente imaginamos essas configurações de forma bem diferente do que ditam as normas sociais”, afirma Sarkis. 

A escultura Plasticidade de NiccoloCasas, feita de Ocean Plastic Foto: Tommaso Biondo

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Um dos destaques do Pavilhão italiano, por exemplo, Plasticidade, uma escultura com 3,6 m de altura, criada pelo arquiteto e acadêmico Niccolo Casas, arrisca um palpite nessa direção ao abordar a questão da sustentabilidade aplicada à arquitetura. Impressa em 3D pela empresa espanhola de design digital Nagami, ela foi produzida com matéria-prima sintetizada a partir de resíduos plásticos recolhidos em mares de todo o mundo, nas operações de limpeza organizadas pela Parley for the Oceans (parley.tv), uma organização ambiental sem fins lucrativos que se concentra na proteção dos oceanos, fundada em 2012 pelo alemão Cyrill Gutsch. 

Concebida por Casas, como uma resposta ao curador italiano Alessandro Melis, que conclamou os arquitetos de seu país a refletirem sobre estratégias radicais para enfrentar as mudanças climáticas, a escultura joga com o sincretismo existente entre as noções de ‘plástico’ e ‘sustentabilidade’. 

Liga-se, diretamente, à ideia do reaproveitamento e conversão de material descartado. Explora a possibilidade da matéria plástica se deformar, sofrer torções, adquirir novas formas, dimensões e propriedades. E, em última análise, adquirir uma nova identidade.

“Acredito que os arquitetos, tanto na academia quanto na vida profissional, devem entrar em contato com fronteiras até então subestimadas, ou até mesmo ignoradas. Por meio deste trabalho, procurei mostrar como a arquitetura pode vir a se tornar um elemento ativador de uma nova consciência. Plasticidade é um exercício arquitetônico de vanguarda, que emprega alta tecnologia. Mas que só se tornou possível a partir do processamento de plásticos interceptados nas atividades de limpeza coletiva dos oceanos”, explica Niccolo Casas.

Detritos acumulados após um dia de limpeza nas praias da Ilha de São Vicente, em São Paulo Foto: Hellen Vidal

Ação global. Para o arquiteto, a escultura demonstra bem como o plástico, de resíduo nocivo e indesejado, pode ser transformado em uma matéria-prima atraente e útil. E, a partir das tecnologias digitais hoje ao nosso alcance, em uma escultura arquitetônica leve e complexa. “Essa instalação é apenas uma entre ilimitadas possibilidades de gerar novas articulações, de instigar ações ecologicamente significativas. Como o trabalho empreendido globalmente pela Parley”, afirma ele.

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Nascida do desejo de Gutsch de retirar a maior quantidade possível de plásticos das águas marinhas, a Parley for the Oceans atua hoje em mais de 30 países. Fiel a seu compromisso original, por meio do trabalho voluntário – mas também da colaboração de empresas locais –, suas equipes organizam, periodicamente, mutirões de limpeza em praias, costas e mares de todo o globo. Além de atuarem na difusão de programas educativos voltados para a conscientização das comunidades litorâneas sobre a ameaça representada pelos resíduos plásticos.

Com a meta de coletar 16 mil toneladas de plástico somente neste ano, a organização já envolveu mais de 260 mil voluntários em mais de 4.500 limpezas. Uma vez limpa e classificada, grande parte do material coletado atualmente é transformada em flocos e comercializada sob a marca registrada Ocean Plastic. E, como na escultura de Casas, marcas de peso como American Express, Adidas e Stella McCartney já o incluem na formulação de seus produtos. Uma lista extensa, que abrange tênis, óculos de sol, roupas de banho e até cartões de crédito.

Costa brasileira. Com um litoral que vai da Bacia do Rio Amazonas e se estende por 4.600 milhas ao longo do Oceano Atlântico, até atingir a Bacia do Prata, no extremo Sul, o Brasil é um campo fértil de atuação para a Parley for the Oceans. Por aqui, a representação local conta com bases em Florianópolis e no Rio de Janeiro, onde são elaboradas estratégias para deter a poluição marinha, conduzir limpezas em praias e ilhas remotas, executar programas de educação ambiental online e ainda responder a eventuais derramamentos de óleo na costa do País.

Desde que entrou em atividade no País, em fevereiro de 2019, a Parley Brazil já conduziu 33 limpezas nas mais diversas localidades: das praias cariocas às ilhas de Fernando de Noronha. Colaborando com uma série de agências governamentais, ONGs locais e cientistas, a equipe brasileira já interceptou mais de 7 toneladas de detritos em suas operações de limpeza. Eventos em geral concebidos para gerar engajamento junto às populações locais.

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“Pesca predatória, derramamento de óleo, poluição por plásticos. O Brasil é um dos países de maior biodiversidade e socialidade do planeta, mas não são poucas as ameaças capazes de colocar em risco a vida nos nossos oceanos”, afirma Juliana Poncioni Mota, coordenadora da Parley Brasil. 

Aberta aos interessados, a página do grupo no Telegram (t.me/s/parleybrasil) exibe as principais notícias referentes às atividades da organização no País. Coloca em contato equipes de limpeza em praias e divulga seus principais eventos.

Como a megaoperação realizada em 2019 no Parque Nacional do Iguaçu – uma floresta tropical rica e biodiversa, pontuada por centenas de grandes cachoeiras, localizadas na fronteira da Argentina e do Brasil –, alvo da ação dos representantes da organização de ambos os países. Antes que a pandemia se instalasse, equipes das duas nações se reuniram na região para realizar limpezas, visitar comunidades locais e conhecer de perto um projeto agroflorestal em processo de implantação.

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Limpeza em praia no litoral de Pernambuco Foto: Anna Veronica

Fernando de Noronha. Um dos raros arquipélagos do Atlântico, com grande diversidade e riqueza biológica, e destacada importância para as aves marinhas, Fernando de Noronha também recebeu a visita da Parley em fevereiro do mesmo ano. Desde então, a organização tem promovido diferentes ações junto à comunidade local e à administração da ilha, com base na sua estratégia global de “evitar” ao máximo “interceptar” e, sempre que possível, “redesenhar” o material plástico. 

“De fato, não acredito que vamos ter os oceanos completamente livres dos plásticos. A solução definitiva só virá mesmo quando eles forem substituídos por novas matérias-primas, naturais ou sintéticas, menos nocivas ao meio ambiente. Mas, por ora, limpar é um bom começo de conversa” afirma Cyrill Gutsch. “Ajuda na preservação da vida marinha, amplia a conscientização sobre o problema. Além de que, uma vez lucrativo, o próprio Ocean Plastic acaba se tornando uma fonte de recursos para financiar a pesquisa de novos materiais”, sinaliza. 

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