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Ser mãe é padecer na internet

Opinião | Violência obstétrica ganha nova faceta às vésperas do segundo turno

Acrescente 'assédio eleitoral' à lista de violências que sofremos na sala de parto

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Foto do author Rita Lisauskas
Atualização:

 Foto: Pixabay

Há pelo menos 20 anos começamos a ouvir o termo 'violência obstétrica', uma expressão criada para nomear sucessivas violações de direitos das mulheres durante a gravidez, parto, pós-parto e em casos de abortamento. Enfrentamos intimidação moral, violência psicológica e até física em alguns dos momentos mais importantes e sensíveis de nossas vidas - a gestação, o nascimento dos nossos filhos ou quando precisamos de atendimento (e acolhimento) porque a gravidez foi interrompida. O problema é tão grave e tão conhecido que já existe um projeto de lei tramitando no Senado Federal para tornar a violência obstétrica crime. E são tantas as formas em que somos agredidas nesse período que é difícil até citar apenas algumas, mas vamos lá.

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Começa muitas vezes na porta da maternidade, quando não deixam que a mulher tenha um acompanhante. Ela é admitida sozinha e ouve que o hospital 'não tem estrutura física' para que alguém fique com ela, direito garantido por lei. E aí enfrenta todas as dores e desafios do parto muitas vezes sem ter uma mão para segurar, recebendo a visita da equipe médica apenas de tempos em tempos, sem saber como e se o parto está evoluindo, fazendo com que o nascimento do filho não seja um momento de felicidade, mas de angústia;

Continua quando somos presenteadas por uma sucessão de exames de toque (introdução de dois dedos no canal vaginal para exame do colo do útero) feitos por diversas pessoas (a enfermeira, o enfermeiro, o médico do plantão, o médico que rende o médico do plantão anterior, todos os estudantes de medicina que aparecerem e por aí vai) que sequer dizem o que vão fazer quando se aproximam para nos examinar;

Passa por não respeitarem a nossa escolha da melhor posição para dar à luz nossos filhos. Somos sempre deitadas na horizontal, mesmo quando nosso corpo pede que a gente ande, agache, fique de cócoras, aproveitando da lei da gravidade para a descida do bebê - os médicos dizem que deitada 'é mais fácil' (para eles, claro, a gente que lute).

Depois, quando a dor começa a apertar e começamos a vocalizar e gemer, ouvimos um agressivo 'na hora de fazer (o filho) não gritou, né?', ou 'Cala boca! Se você gritar nós não vamos te atender' e por aí vai. As dores do parto podem ser muito fortes e nem todas as mulheres conseguem manejar as tais contrações que vão e vêm, cada vez mais fortes, longas, com menos intervalo de tempo, sem a ajuda de uma anestesia. Muitas passam horas e mais horas em profundo sofrimento sem analgesia porque 'não tem anestesista'. (Esse profissional pode aparecer milagrosamente se a mulher desistir do parto normal e implorar por uma cesárea, algo que cai como uma luva na agenda apertada da equipe de saúde.)

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E nessa pressa do sistema para que nossos filhos nasçam logo, desocupando leitos e agendas, também somos 'presenteadas' com a chamada manobra de Kristeller: um profissional de saúde sobe na nossa barriga, coloca o braço na divisa entre o tórax e o abdômen e faz pressão com o peso do próprio corpo para empurrar o bebê e apressar sua saída do útero. A mulher pode ficar sem ar, sofrer ferimentos internos e o bebê pode nascer com problemas por conta dessa 'manobra', mas vai reclamar, vai? Grandes chances de ser classificada como histérica ou 'mimizenta'. Também ouve que não entende nada, que fizeram isso para 'salvar a vida do bebê'. Mesmo com o Ministério da Saúde condenando a manobra de Kristeller, ainda ouço por aí que ela pode ser utilizada 'em alguns casos'.

Há também o 'ponto do marido', conhece? Depois do parto, dá-se 'um ponto a mais' na vagina da mulher, para que ela fique 'mais apertada' e dê 'mais prazer' ao tal marido. Muitas só entendem que foram vítimas dessa violência quando sofrem com as dores horríveis nas relações sexuais. Uma temeridade, uma prática da Idade Média, que vire e mexe acontece em uma maternidade perto de você.

Essas são apenas algumas das violências que as mulheres enfrentam nessa jornada da maternidade e achei que já conhecia todas depois de tantas entrevistas que já fiz sobre o assunto (leia algumas nos links abaixo). Só que descobri que não. Às vésperas do segundo turno da eleição presidencial, um obstetra que assiste a partos na Maternidade do Povo, em Belém (PA), achou que era uma boa ideia filmar um bebê e sua mãe que acabara de dar à luz, constrangendo a família a declarar o voto no candidato à reeleição Jair Bolsonaro.  Mas ele não parou por aí: também não viu problemas em postar o vídeo em suas redes sociais.

A primeira imagem mostra o bebê que acabara de nascer, Gael.  O médico imita a voz que seria do recém-nascido, em um tom bem tatibitati. "Eu sou Gael, já nasci 22. Vou votar no Bolsonaro." Na sequência, o obstetra faz piada com o pai do bebê, vestido com um uniforme cirúrgico vermelho fornecido pelo hospital. Sugere que seria eleitor de Lula. "Rapaz, tu quer que eu vá embora já, nem opere ela?" Aí segue com o celular até a maca e filma a gestante deitada, ainda um pouco anestesiada, e diz: "Essa aqui é a mãe do Gael. Dia 30 ela vota?... 22! Diga. Vou mandar para o Bolsonaro esse vídeo que ele está em uma live especial", afirmou, fazendo referência à live do candidato à reeleição. A mulher vira o rosto e não responde ao obstetra, ou por estar ainda estar sob efeito de medicações, ou por constrangimento. Não dá para saber. Depois da péssima repercussão, o médico apagou o vídeo de sua rede social. Em nota, o Conselho Regional de Medicina do Pará afirmou que "vai apurar o fato" e tomará "todas as medidas legais".

As imagens viralizaram, claro, mas quem salvou o vídeo teve o cuidado de 'borrar' a imagem da mãe, do pai e do bebê, que talvez não sejam publicamente reconhecidos e suas identidades sejam mantidas sob sigilo. Procurados por alguns veículos de imprensa, desconversaram, e o pai disse até que não se sentiu constrangido pela atitude do obstetra. Mas nos constrangemos por eles.

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A única coisa que uma mulher que acabou de dar à luz pode aceitar de um médico são votos de saúde e felicidade para ela e o bebê. E a parturiente pode agradecer pelo atendimento prestado, claro. A relação médico paciente é desigual: de um lado quem está saudável e possui o conhecimento e o poder de promover um tratamento ou um atendimento. Do outro, alguém que não é formado em Medicina e precisa ser tratado, atendido, curado, por isso o lado mais fraco dessa relação. Dito isso, o óbvio: uma mulher que acabou de ser operada e que ainda precisa levar pontos, ser medicada e atendida não pode jamais ser constrangida a declarar seu voto, seu time de coração, sua religião ou cor favorita, ainda mais se o lado mais forte, aquele que está no comando, indica qual a única resposta aceita ouvir. Esse lado está com o bisturi na mão. Ou com o seu bebê nos braços. É repulsivo. É criminoso. E faz com que a gente acrescente 'assédio eleitoral' à lista cada vez maior de violências que sofremos na sala de parto. Mais uma.

Leia mais: "Não me corta!" Mulheres imploram, mas mesmo assim são mutiladas durante parto normal

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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