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‘Nosso trabalho é humanizar os jogadores’, diz Grafite sobre ex-boleiros em carreira de comentarista

Ex-atacante do São Paulo fala sobre seus comentários no SporTV/Globo, cita ‘egoísmo’ ao relembrar caso de racismo na carreira e conta bastidores da eliminação da seleção na Copa do Mundo da África do Sul

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Foto do author Rodrigo Sampaio
Atualização:
Foto: Divulgação/Play9
Entrevista comGrafiteEx-jogador de futebol e comentarista

Grafite viveu o caminho inverso nos últimos cinco anos. Depois de se aposentar no Santa Cruz, em 2018, longe dos holofotes dos times do eixo Rio-São Paulo, o ex-jogador passou a ser figura constante na TV. O perfil boleiro aos poucos foi dando lugar para um tipo mais analítico de profissional, aproveitando o conhecimento adquirido ao longo de duas décadas no futebol, com direito a idolatria na Alemanha e uma Copa do Mundo no currículo, a de 2010, para trabalhar na função de comentarista na Rede Globo e no canal pago SporTV.

Como jogador, a projeção nacional veio com a camisa do São Paulo, ajudando o clube do Morumbi a conquistar títulos importantes, como o Mundial de Clubes da Fifa, em 2005. Já a função de comentarista surgiu quase que por acaso, incentivado pelo amigo Tiago Medeiros, apresentador do programa “Globo Esporte”, em Pernambuco. Apesar do início acanhado, sendo orientado até mesmo a falar mais alto nas transmissões, Grafite mostrou desenvoltura. Menos de um ano depois de pendurar as chuteiras, foi contratado para trabalhar na edição especial do programa “Troca de Passes”, na Copa do Mundo da Rússia. De lá para cá, ele deu um salto na nova função e tem um objetivo: “humanizar o jogador de futebol”, diz ao Estadão.

Grafite não esconde o orgulho de fazer parte da emissora carioca e entende a representatividade de ser um homem negro em frente às câmeras. Ele entende ser necessário falar de racismo, aplaude Vini Jr. por combater com veemência a perseguição sofrida nos gramados da Espanha e afirma se arrepender de não ter levado até o fim a denúncia contra o argentino Leandro Desábato, que ofendeu o jogador na partida entre São Paulo e Quilmes, na Libertadores de 2005, e foi preso na saída de campo do Morumbi.

Grafite mora no Rio, onde trabalha como comentarista do canal Sportv. Ex-jogador é novo membro do casting da Play9.  Foto: Divulgação/Play9

Aos 44 anos, o paulista de Jundiaí ganhou a simpatia do público, mas reconhece ainda haver resistência de parte da imprensa com boleiros ganhando espaço em programas esportivos. Para reverberar ainda mais sua voz, ele firmou uma parceria com a Play9, mediatech que agencia nomes como Galvão Bueno e Fátima Bernardes, entre outros, e tem como sócios o comunicador digital e youtuber Felipe Neto, o jornalista e empresário João Pedro Paes Leme e Marcus Vinicius Freire, ex-diretor do Comitê Olímpico do Brasil (COB). Grafite pretende investir em sua imagem, especialmente nas redes sociais, e alavancar também sua carreira como palestrante.

Como surgiu a ideia de virar comentarista?

Tudo começou em 2016, após o fim da temporada no Santa Cruz. Fiz uma aposta com o Tiago Medeiros de andar lá no Recife com uma peruca loira se eu não marcasse 15 gols. Terminei com 13 e paguei a promessa. Depois, ele me perguntou o que eu ia fazer depois de parar de jogar e eu disse que não sabia. Ele falou ‘você pode ser comentarista. Se expressa bem, tem boa dicção’. No final de 2017, fui convidado para comentar alguns jogos do Estadual como ex-jogador e o feedback foi positivo. Fui para São Paulo e Rio para fazer alguns programas na Rede TV! e no antigo Esporte Interativo, daí surgiu o convite da Globo. Eu procuro trazer para a TV tudo o que vivi em campo. Nem sempre um jogador perde um gol porque é ruim, às vezes é a posição corporal, por exemplo. Nosso trabalho é humanizar o jogador. Aprendi que se eu estou comentando uma partida, o atleta não vai ouvir, mas a família dele vai. E ela sofre tanto quanto quem está em campo.

Ficou ofendido com algum comentário quando era jogador?

Eu não tive uma passagem boa pelo Athletico-PR. À época, teve um narrador que disse que eu não estava à altura de vestir a camisa do time, sugerindo que estava roubando o clube. Minha mulher e minha filha estavam vendo o jogo em casa. Percebi que elas estavam tristes quando cheguei e me contaram o que aconteceu. Eu acho essa comparação injusta. Nenhum jogador chega com uma arma no clube e fala ‘quero ganhar R$ 200 mil’. Se o clube aceitou, é porque achou justo.

Existe preconceito na imprensa com boleiros ganhando espaços em programas esportivos?

Existe porque, querendo ou não, a gente está ali no lugar de um cara que estudou para ser jornalista, e eu entendo o lado deles. Lógico que o fato de ter jogado futebol me credencia a estar ali. Acho que há espaço para todo mundo. Eu não estudei para ser comentarista e às vezes dou umas derrapadas no português, mas não ligo para isso. Faço fono para melhorar minha pronúncia e procuro melhorar a cada dia na função.

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Você se tornou um símbolo da luta contra o racismo quando era jogador. Atualmente, o Vini Jr. passa pelo mesmo problema. Acha que ele deveria abandonar a Espanha?

O racismo não está restrito somente à Espanha e não acho que seja o caso de ele abandonar o país. Falta acolhimento da federação espanhola. No fim de semana, o João Félix (do Barcelona) provocou a torcida do Atlético de Madrid, o que acho normal. Se o Vini fizesse 10% do que o Félix faz, os jornais da Espanha iam massacrá-lo. Há uma perseguição, sim, por conta da cor da pele dele. Falta punição mais rígida por parte da Fifa. E não basta punir, tem de educar. Se educarmos as crianças, a gente pode ter um futuro melhor, mas o adulto que é racista não vai mudar. Então é só punindo.

Grafite se tornou símbolo da luta contra o racismo após episódio em jogo do São Paulo na Libertadores.  Foto: Divulgação/Play9

Acha que falta engajamento de mais atletas?

Quando aconteceu o episódio George Floyd algumas pessoas se questionaram por que os jogadores brasileiros não se engajam como os atletas dos EUA. Muitos não se engajam porque não têm conhecimento da nossa história, da escravidão até hoje. A maioria é de família humilde e não sabe se expressar. Nos EUA, os jogadores são “draftados” das universidades. Estão estudando. Estão com conteúdo. No Brasil, eles deixam de estudar para ajudar em casa. É preciso investir e capacitar as pessoas, para que nós, negros, também possamos ocupar cargos diretivos e tomar decisões. Não adianta eu chegar na delegacia para denunciar um caso de racismo e o delegado ser branco.

Por que não levou adiante a denúncia contra o Desábato?

Ninguém falava mais dos gols que eu fazia ou perdia. Tive uma lesão e só falavam do caso de racismo. Aquilo não estava sendo bom para mim e para minha família. Tive seis meses para prestar queixa-crime. Quando expirou a data, achei melhor não levar adiante. Hoje, reconheço que fui egoísta. Eu pensei só em mim. Se fosse hoje, faria diferente e levaria até às últimas consequências.

Você esteve na Copa de 2010. Aquela seleção é tida como uma das últimas a mostrar brio na luta pelo título. Como foi o vestiário na eliminação para a Holanda?

O primeiro tempo era para ter sido dois, três... A gente estava mandando no jogo, mas tudo mudou rapidamente. O Sneidjer, que nunca fez um gol de cabeça, foi lá e fez. Engraçado que quatro dias antes, depois do jogo com o Chile, o Maicon fez uma chamada de vídeo com ele. Eles jogavam juntos na Inter. Daí o holandês falou assim “a Copa acabou para nós agora. Vocês vão passar por cima”. Ou seja, nem eles acreditavam. No vestiário, todos ficaram de cabeça baixa, uns chorando. Na janta, o Julio Cesar fez um discurso emocionante e pediu desculpas pelo primeiro gol, mas paciência. A seleção de 2010 bateu na trave. A de 2014, 2018 e 2022 nem chegou a bater.

Falta um centroavante de peso na seleção?

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Gabriel Jesus e Richarlison são bons atacantes, mas não são camisas 9. Depois que o Guardiola inventou o falso 9, os centroavantes começaram a sumir — e isso vai refletir na seleção. Acho que o Victor Roque é um jogador que pode suprir essa função para as próximas Copas do Mundo. Enquanto isso, a gente tem de continuar tentando com o Gabriel Jesus, com o Richarlison ou o próprio Pedro, que está se configurando novamente para voltar a vestir a camisa da seleção brasileira. Mas não adianta também se não tiver um sistema de jogo para ele.

Acha que trazer o Ancelotti pode ajudar a resolver a má fase do Brasil?

Acho um grande nome e que vai acrescentar bastante e trazer muita credibilidade para seleção brasileira. Ele vai ter um tempo maior de adaptação, mas também não sei se vai conseguir resolver esse problema da camisa 9.

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