Portugal, ‘viveiro’ de treinadores, anda muito impaciente com eles

Doze dos 18 clubes da primeira divisão do Campeonato Português já trocaram de técnico nesta temporada. Afinal, existe uma ‘escola’ de técnicos no país?

PUBLICIDADE

Por Sérgio Rizzo, especial para o Estadão

PORTO - A menos de cinco meses de enfrentar o Palmeiras no Mundial de Clubes da FIFA, o Futebol Clube do Porto deu início a um processo de reformulação que deverá alterar rapidamente o seu estilo de jogo. O português Vitor Bruno foi demitido, na esteira de protestos da torcida contra o mau desempenho da equipe. Para o seu lugar, foi contratado o argentino Martín Anselmi, 39 anos, campeão da Copa Sul-Americana (contra o São Paulo) e da Recopa (contra o Flamengo) pelo Independiente Del Valle (Equador), e que estava no Cruz Azul (México). Anselmi estreou no dia 30 de janeiro, com uma vitória por 1 a 0 sobre o Maccabi Tel Aviv (Israel) que valeu a classificação para os playoffs da Europa League, em que o Porto enfrentará a Roma (Itália).

A demissão de Vitor Bruno, apenas seis meses depois de assumir o cargo em substituição a Sergio Conceição (atualmente no Milan), aproxima Portugal de um cenário de impaciência com os treinadores que é muito comum no Brasil. Na atual temporada, 12 dos 18 clubes da Primeira Liga (a principal divisão) já trocaram de “mister”. Pela primeira vez em 91 anos, os três grandes promoveram mudanças. No final de agosto, o Benfica havia substituído o alemão Roger Schmidt por Bruno Lage (ex-Botafogo). O Sporting, com a saída de Rúben Amorim para o Manchester United, em novembro, promoveu o treinador da equipe B, João Pereira, demitido pouco mais de um mês depois e substituído por Rui Borges. Em janeiro, Pereira regressou à equipe B.

Bruno Lage com Nicolas Otamendi em jogo do Benfica Foto: Marco Bertorello/AFP

Para o jornalista José Manuel Ribeiro, ex-diretor do diário esportivo “O Jogo” e atual comentarista do Canal 11 (que transmite o Paulistão e o Brasileirão), há “um conjunto de razões” por trás desse ritmo intenso de trocas. “Os clubes portugueses são quase tão adeptos do despedimento de treinadores como os brasileiros, mas esta temporada talvez seja diferente. A qualidade das equipes tem caído, incluindo as maiores, e o treinador paga pelos resultados disso. O recrutamento complicou-se muito. Todos os clubes ingleses, espanhois e alemães trabalham bem na prospecção, e a maioria possui recursos financeiros maiores.”

PUBLICIDADE

Ribeiro observa que “os escandinavos também evoluíram nesse trabalho”. “No Brasil, os salários já superam os dos clubes portugueses da classe média/baixa. Nos clubes grandes, voltaram-se para o mercado europeu, que é muito mais caro na relação preço/qualidade. Pavlidis custou 20 milhões de euros ao Benfica, Gyokeres custou 25 milhões de euros ao Sporting, e Samu custou 15 milhões de euros ao Porto, por metade do passe. Torna-se difícil construir planteis homogêneos, porque o dinheiro disponível desaparece em dois ou três jogadores.”

O jornalista Manuel Queiroz, fundador de “O Jogo” e atualmente comentarista em emissoras de rádio e TV, lembra que “houve até mais do que 12 demissões, se considerarmos os que saíram antes de a Liga começar”. “Estamos numa fase de transição de dirigentes. Creio que outra razão é que se confia pouco nos treinadores mais experientes, em favor de jovens promissores (e românticos) que acabam por não entregar resultados. E provavelmente a fase dos grandes treinadores portugueses passou, porque muitos sairam para o estrangeiro.”

Na análise de Ricardo Pinto, professor da Universidade Fernando Pessoa e jornalista da Agência Lusa, o “aumento da ansiedade” tornou as demissões um “fenômeno universal”. “A massa dos torcedores ficou muito impaciente. Em Portugal, transformações na legislação durante os últimos anos levaram a um controle orçamentário mais restrito. Antes, os clubes viviam acima das suas possibilidades. Agora, a prioridade é pagar dívidas e colocar as contas em ordem.” Pinto observa que “as dificuldades em buscar jogadores e resultados” tornaram a Primeira Liga “mais dividida e disputada”.

O presidente da Confederação de Treinadores de Portugal, Pedro Sequeira, aponta para uma cultura que lembra muito a do Brasil. “Em Portugal, infelizmente criou-se o mito que, quando uma equipe começa a ter algum insucesso — por exemplo, perder três jogos seguidos —, é mais fácil (e mais barato!) culpar o treinador do que os jogadores ou os dirigentes. Na maior parte dos casos, a troca de treinadores não leva ao sucesso. Os clubes do fundo da tabela chegam a trocar três ou quatro vezes ao ano o treinador. No final, em caso de insucesso, percebe-se que a falta da qualidade do plantel e de outras condições de trabalho é que eram os ‘verdadeiros’ culpados.”

Abel Ferreira é um dos muitos técnicos portugueses mundo afora - e o de maior sucesso atualmente Foto: Alex Silva/Estadão

Sequeira recorre a exemplos de portugueses no Brasil para reforçar a ideia. “O Botafogo na temporada 2023, com a saída do Luis Castro, andou de treinador em treinador até a derrota final. No ano seguinte, acreditou e apostou na estabilidade — também passou por períodos difíceis — e no final foi campeão. Já o Palmeiras tem vencido nos últimos anos vários campeonatos e, quando não vence, mantém o Abel Ferreira. Desta forma, continua a ganhar mais vezes do que fazia antes.” Em Portugal, ele lamenta que “as direções têm dificuldades em resistir à impaciência dos torcedores, e cada um acha que sabe mais que os treinadores.”

Publicidade

E, mais uma vez, Sequeira identifica em Portugal um comportamento que encontra eco no Brasil. “Julgo que a tendência de se criar a ideia que o treinador é um herói, e o único responsável pelo sucesso e insucesso de uma equipe, não beneficia uma avaliação clara e profissional da situação em que uma equipe se pode encontrar. Lesões, superioridade dos adversários, condições de treino, dificuldades financeiras etc. são algumas das variáveis que podem explicar insucessos momentâneos. Mas o treinador é o elo mais fácil de se eliminar. Tem que se mudar as mentalidades.”

Observador dentro e fora de campo das transformações do futebol português nos últimos 25 anos, o ex-lateral esquerdo Rubens Junior — campeão da Libertadores de 1999 pelo Palmeiras, ex-jogador do Porto e atualmente comentarista do Porto Canal — considera que os treinadores portugueses “evoluíram muito” nesse período porque “se empenharam muito” para que isso ocorresse. “Eles são muito dedicados, diferentes, disciplinados. Tentam ser criativos, tentam buscar mais conteúdo, mais informação, e isso dá crescimento. Não ficam presos a ideias do seu país, não. Se eles tiverem que aprender com os italianos, os espanhois ou os brasileiros, eles vão e tentam extrair o que é o melhor de cada um.”

Além do padrão tático que se encontra no trabalho de treinadores portugueses, Rubens Junior destaca “a intensidade que aplicam no trabalho”. “Na minha época como jogador, era muito difícil você cobrar intensidade, compromisso, comprometimento dos atletas. Eu penso que essa gestão mais severa, entre aspas, mais dura, com os atletas, cobrando muito mais deles do extracampo e tudo mais, ajuda muito na parte de rendimento. O Abel Ferreira hoje é um treinador exemplo disso, de gestão de pessoas, como ele usa a parte mental.”

No Porto, Rubens Junior trabalhou com dois nomes-chave do que muitos consideram uma espécie de “escola” portuguesa de treinadores: Fernando Santos, campeão europeu com a seleção de Portugal em 2016, e José Mourinho, de longe o nome mais estelar de sua geração, duas vezes campeão europeu (com Porto e Inter de Milão) e campeão nacional em Portugal, na Inglaterra (com o Chelsea), na Itália (com a Inter) e na Espanha (com o Real Madrid). “Fernando Santos era um treinador que preservava muito a parte defensiva, gostava muito de jogar pelos corredores, sempre ter um jogador na frente, e era uma pessoa muito séria no trabalho, uma pessoa que também tinha uma boa visão, principalmente estratégica, de montar a equipe.”

Publicidade

Jose Mourinho durante jogo do Fenerbahçe Foto: Yasin Akgul/AFP

PUBLICIDADE

Mourinho, na sua avaliação, “foi um treinador revolucionário” num período — início do século 21 — em que o futebol “mudou muito, principalmente em termos de treinamento e estratégias”. “Antes, a preparação física era separada, todos os atletas faziam o mesmo treino físico, sem bola, principalmente em pré-temporada. Uma ou duas vezes na semana era só treino físico, sem bola, sem nada. Isso deixava a gente muito mais duro, sem mobilidade e com pouco tempo de contato com bola. Porque a bola, quanto mais repetição, mais tempo você tiver, quanto mais você executar, mais chance você tem de acertar e aprimorar. O Mourinho já veio com isso. O seu primeiro treino já era com bola, bola com físico, com situação de jogo. A visão que ele tinha do adversário era incrível, então ele conseguia sempre descobrir onde a gente podia ferir, onde a gente podia atacar, onde a gente poderia ser mais forte, e vencer os jogos.”

Rubens Junior elogia a capacidade de Mourinho de “lidar também com estrelas”. “Isso era o diferencial dele. Saber lidar com jogadores vaidosos, orgulhosos, que já estão habituados a ganhar. Esses jogadores são muito inteligentes, têm muita noção e visão de jogo, e aí você precisa ter um nível muito alto de conhecimento para que esse jogador fale, “olha, realmente esse treinador me surpreendeu, consegue ver mais ainda que eu”. Mourinho conseguia chegar no mesmo nível de visão, de decisão e de interpretação dos grandes jogadores.”

Mourinho está hoje no Fenerbahce (Turquia) e Santos dirige a seleção do Azerbaijão. Quatro clubes da Premier League inglesa têm treinadores portugueses, forte presença que Ribeiro atribui ao agente Jorge Mendes: Nottingham Forest (Nuno Espírito Santo), Fulham (Marco Silva), Manchester United (Amorim) e Wolverhampton (Vitor Pereira, ex-Corinthians e Flamengo). Outros se espalham por diversas ligas da Europa e da Ásia, como Jorge Jesus (ex-Flamengo, no Al Hilal, da Arábia Saudita), Artur Jorge (ex-Botafogo, no Al-Rayyan, do Catar) e Conceição (Milan). Abel é o treinador mais longevo entre os grandes clubes do Brasil. Esses nomes, reunidos, representariam uma “escola”? Os entrevistados pelo Estadão não acreditam nisso.

“Não há exatamente uma linha que possa agrupar todos eles, que envolva a mesma formação e os mesmos conceitos”, afirma Ricardo Pinto. “Fala-se, por exemplo, de uma escola de arquitetura do Porto. Parece adequado. São arquitetos que tiveram a mesma formação, alicerçada em um conjunto de valores. Entre os treinadores, há percursos substancialmente diferentes. Tenho dificuldade em identificar pontos de contato. Prefiro o uso do termo “viveiro”. Portugal é um viveiro de treinadores que têm muito sucesso.” Pinto lembra Artur Jorge (1946-2024), campeão europeu pelo Porto em 1987 e campeão francês pelo PSG em 1994, como alguém que “abriu caminho” graças a uma cultura “acima da média” (era um colecionador de pintura, por exemplo) e que cultivou o inicio de uma tradição de qualidade.

Publicidade

Ribeiro considera que, em Portugal, “se exagera muito na avaliação dos portugueses, com base nos títulos que foram ganhando por equipes estrangeiras”. Em artigo recente publicado pelo jornal “Público”, ele lembra o exemplo dos argentinos, que venceram mais competições e em mais continentes, incluindo na Europa. “Discutir quem são os melhores treinadores do mundo só é ultrapassado em infantilidade pela proclamação de que são os portugueses. Todos acabam por beber alguma coisa de um caldo de conhecimento que foi crescendo desde o final dos anos 1980, com o professor Carlos Queiroz (bicampeão mundial sub-20 com a seleção portuguesa e ex-treinador do Real Madrid).”

Em Portugal, Ribeiro acredita que “universidade e futebol profissional entenderam-se mais cedo” do que em outros países. “Mourinho, licenciado pela Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa, trouxe o impulso que faltava. Mas Jesus é um treinador da velha escola, Abel também tem formação acadêmica e Artur Jorge leva 15 anos de carreira, quase sempre em escalões de formação ou divisões inferiores. São percursos muito diferentes, e ideias também muito diferentes. Se partilham alguma coisa, são o elevado grau de organização, a preparação do trabalho e do jogo, e abertura para ouvir e integrar profissionais de áreas diferentes.”

Se existe algo que possa corresponder a uma “escola portuguesa”, Ribeiro diz que seria o conceito de “periodização tática” desenvolvido pelo professor Vitor Frade, da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. “Em termos grosseiros, a periodização tática parte da premissa de que o trabalho com bola fornece toda a preparação física de que um futebolista precisa, porque são repetidos os mesmos movimentos e as mesmas cargas. Tudo se faz com bola, dentro de uma metodologia complexa, que o Porto de José Mourinho, em 2003 e 2004, tornou famosa. Hoje está espalhada pelo mundo, embora muitas vezes complementada com outras ideias. Quando afirmo que é a única “escola portuguesa”, faço-o porque em Portugal não há um estilo de jogo comum, como o tiki-taka espanhol ou o “kick and rush” inglês. Os treinadores portugueses não marcaram o futebol com inovações táticas, nem uma forma de jogar específica.”

Queiroz concorda com a lembrança. “Não há propriamente uma escola de treinadores em Portugal, mas há várias boas ideias. Uma delas é a periodização tática, por cá plasmada em Vitor Frade.” Sequeira amplia a lista dos que seriam responsáveis pelo florescimento do prestígio dos treinadores portugueses. “Não é justo referir apenas Vitor Frade. Ele tem a sua importância mas outros, antes — Carlos Queiroz, Nelo Vingada (adjunto de Queiroz) ou Jesualdo Ferreira (ex-Santos) — ou depois — principalmente José Mourinho mas também André Villas-Boas (atual presidente do Porto) ou Carlos Carvalhal (hoje no Sporting Braga) — enraizaram essa escola de treinadores. Estou convencido que o sucesso de José Mourinho foi o grande impulsionador para que os treinadores portugueses passassem a ter um estatuto de credibilidade.”

Publicidade