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O rei morreu, viva o rei!

Pelé foi quem mais reuniu em sua figura verdadeiras dimensões de um herói

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colunista convidado
Foto do author Roberto DaMatta
Por Roberto DaMatta

A expressão foi usada pela primeira vez na coroação de Carlos VII, após a morte de seu pai, Carlos VI numa França de 1422. Nem o Brasil ou o futebol existiam. Relembro-a agora porque perdemos um Rei. O Pelé que era de todos nós e que talvez tenha sido - dentre os que estão no nosso parco panteão de heróis com caráter - aquele que mais reuniu em sua figura as verdadeiras dimensões de um herói. Pois herói é quem enfrenta sem medo e com a honestidade do corpo as suas lutas, como foi o caso deste Pelé de três Copas, centenas de jogadas inigualáveis, mais de mil gols e nascido negro e na pobreza mineira, mas honrada, de Três Corações.

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Edson Arantes do Nascimento não ficou famoso porque foi um político honesto ou ladrão. Nem porque fazia filmes e novelas; ou porque tinha nome de família ou “sabia” ganhar dinheiro. Não!

Sua realeza vai além do gosto e da opinião. Era real porque Pelé foi praticante de uma atividade na qual o talento se expressa no seu estado mais puro e vivo. Foi dele a tarefa e o destino de transformar o mero desempenho esportivo numa autentica arte performativa. Tal como fazem os grandes músicos. Os virtuoses, cujos movimentos tornam real o que mal pode ser imaginado e, assim, reúnem Beleza e Verdade. Algo raro num país elitista, paternalista e aristocrata, mas tocado por gente negra - africana e estrangeira - duplamente explorada e estigmatizada.

Santos usará uma coroa no uniforme para homenagear o Rei Pelé. Foto: Matias Delacroix/ AP

Pelé tornou-se rei porque seu “trabalho” era claro e ocorria no campo aberto e verde de um estádio contra algum adversário e, sem dúvida, contra o Edson que o habitava e com ele dividia o medo, a angustia, a doença e a morte.

Se os políticos tomam posse dos seus cargos de modo definitivo e com eles enriquecem, Pelé jamais se deixou levar pela aristocracia de ter sido três vezes campeão do mundo e de ser eleito o atleta do século 20.

Não foi por acaso que o país que até hoje mal se livrou da escravidão e jamais quis clarear as normas do poder elegeu como Rei o seu jogador mais negro e, como negro, o mais brilhante e luminoso futebolista da história desse esporte inventado pelos ingleses.

Tudo que as nossas classes dominantes que jogam tanto na esquerda quanto na direita, até hoje devem ao futebol: o disputar com elegância e de acordo com as regras. Prova isso algo notável, ausente em qualquer celebridade perdida no labirinto do seu narcisismo: a implacável e surpreendente divisão com a qual Pelé atuava.

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De um lado, dizia, há o Edson Arantes do Nascimento; do outro, há o Pelé. Um é um homem negro comum que, sem o talento futebolístico seria provavelmente pobre e certamente passaria em branco, ignorado pelo nosso sistema que não olha para o lado e odeia ver os que estão em baixo. O outro é o Rei do Futebol. O herói que resgatou o orgulho e a esperança de vitória do povo brasileiro.

Perdemos os dois. E por isso eu escrevo com lágrimas nos olhos.

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