É falso que todas doenças autoimunes sejam causadas por parasitas

Condições como lúpus e vitiligo são desencadeadas por diferentes fatores; postagem falsa usa como fonte escritora acusada de fraude

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O que estão compartilhando: vídeo no Instagram afirma que “doenças autoimunes não existem” e que seriam causadas, na verdade, por parasitas. A legenda da postagem cita como fonte os estudos de Hulda Regehr Clark.

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O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Ainda não se conhecem completamente as causas das doenças autoimunes, de acordo com o Ministério da Saúde. Existem vários fatores que podem causar reações autoimunes, segundo o Manual MSD. As doenças autoimunes são aquelas em que o sistema imunológico, responsável pela proteção do corpo, ataca o próprio organismo por engano. Alguns exemplos são diabetes tipo 1, vitiligo e lúpus. De acordo com a médica reumatologista e diretora científica da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR), Lícia Maria Henrique da Mota, essas são doenças multifatoriais. “Não é um fator único que predispõe a sua ocorrência”, explica.

O nome citado na postagem enganosa, Hulda Regehr Clark, é de uma biofísica e fisiologista americana. Ela lançou livros como A Cura para Todas as Doenças, A Cura para HIV e AIDS e A Cura para Todos os Cânceres Avançados. Segundo a autora, o câncer e outras doenças graves seriam todos causados por parasitas intestinais. A cura envolveria o uso de aparelhos eletrônicos e soluções com ervas. Mas essas afirmações carecem de embasamento científico. As supostas descobertas de Clark foram alvo de embates legais envolvendo acusações de fraude.

O Verifica tentou contato com o perfil responsável pelo conteúdo, mas não teve resposta.

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Não existe embasamento científico algum para as afirmações no vídeo. Foto: Reprodução/Instagram

Saiba mais: O conteúdo verificado aqui aparece com o título “99% das doenças são parasitas!” no Instagram. A legenda da postagem afirma: “Eu sei que parece inacreditável, mas a realidade é que esse mundo é controlado pelos parasitas. Para quem deseja estudar recomendo ver os estudos da Hulda Regehr Clark”. A publicação chama pessoas para “participarem do maior grupo de desparasitação do Brasil”, que visa a ensinar técnicas para se livrar desses “vermes”.

Quem é Hulda Clark

Clark se tornou conhecida nos anos 2000 ao afirmar que a causa de doenças como câncer, Aids e várias doenças seria um único parasita intestinal. Ela afirmava que a cura seria alcançada com uma mistura de ervas. Depois, ela passou a promover um aparelho chamado de “zapper”, que mataria o tal parasita. Mas nenhuma dessas afirmações têm embasamento científico.

Em 2003, a Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos (FTC, em inglês) apresentou acusações de fraude contra empresas por fazerem falsas alegações de saúde a respeito de um dispositivo comercializado como cura para Aids, câncer e outras doenças graves. Segundo a cobertura da imprensa na época, os grupos vendiam dispositivos e produtos à base de ervas desenvolvidos por Clark. Na época, ela operava em uma clínica de medicina alternativa em Tijuana, no México.

O então diretor do escritório de Proteção ao Consumidor da FTC afirmou na época que a agência buscava combater “comerciantes inescrupulosos” que usam a Internet para atacar os consumidores mais doentes e vulneráveis.

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Os livros de Clark citam dois aparelhos criados por ela mesma. O “Syncro Meter”, que diagnosticaria a “verdadeira” causa de todas as doenças, e “zapper”, uma máquina operada por bateria que prometia eliminar parasitas e toxinas com uma leve corrente elétrica.

De acordo com a agência de checagem Science Feedback, nenhum desses aparelhos promovidos por Clark tem eficácia comprovada. Não há registro de que o “zapper” tenha passado por testes clínicos e o “Syncro Meter” simplesmente detecta pequenas correntes elétricas, não tendo valor algum para realizar diagnósticos. Outra questão é que não se sabe quais os critérios utilizados para avaliar a cura ou melhora de seus pacientes. Também não se tem certeza se todos os afetados por seus métodos de fato tinham câncer ou a doença da qual tratavam.

Clark foi alvo de uma série de ações na Justiça, tanto nos EUA quanto no México, em razão de acusações de negligência, fraude e prática ilegal da medicina, segundo o Science Feedback. Clark faleceu em 2009, vítima de mieloma múltiplo, um tipo de câncer de sangue.

O que são as doenças autoimunes?

A reumatologista Lícia Maria Henrique da Mota começa explicando que, quando o sistema imune está funcionando normalmente, ele reconhece e defende aquilo que é do próprio organismo. Na doença autoimune, existe uma desregulação. “O sistema imune confunde o próprio organismo com aquelas agressões que ele deveria destruir, e ataca fortemente algumas células”, detalhou a médica da SBR.

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São mais de 100 tipos de doenças autoimunes, segundo a Autoimune Association, associação que pesquisa a doença. Alguns exemplos são:

  • Lúpus: pode atacar pele, mucosas, articulações, vasos, células do sangue, sistema neurológico, e qualquer órgão ou tecido do organismo.
  • Vitiligo: corpo ataca os melanócitos, células que produzem a melanina. A doença causa o surgimento de manchas brancas na pele com tamanhos e formatos variáveis.
  • Diabetes tipo 1: afeta as glândulas produtoras de insulina, hormônio responsável por colocar açúcar dentro das células para gerar energia. A pessoa já nasce com essa condição, mas pode manifestar sintomas somente quando mais velhas.
  • Artrite reumatoide: afeta as articulações, causando dor, inchaço e rigidez. É uma doença sistêmica e também pode afetar órgãos internos, como pulmão e coração.

O que causa as doenças autoimunes?

A diretora científica da SBR diz que alguns indivíduos nascem com marcadores genéticos que os tornam predispostos a desenvolver essas condições. Mota completa que as doenças autoimunes advêm de uma combinação de fatores. No indivíduo que já é predisposto, a reumatologista afirma que podem influenciar fatores do ambiente, como a exposição a cigarro e tabaco; alimentares, como açúcares e gorduras ruins; ou componentes hormonais.

Em vários casos, a médica explica que também existe uma relação com infecções. Por exemplo, Mota diz que algumas infecções virais, como a própria chikungunya, e algumas infecções bacterianas, como periodontites (nas gengivas), em algumas situações, podem desencadear uma resposta imune inadequada em um indivíduo que já é predisposto.

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Diagnóstico precoce é fundamental

O tratamento das doenças autoimunes evoluiu enormemente nas últimas décadas, de acordo com a diretora científica da SBR. “Hoje nós temos uma possibilidade muito grande, em algumas dessas doenças, de obter o controle da doença e até a remissão, que é o desaparecimento de todos os sinais e sintomas”, explicou.

A reumatologista esclarece que, por hora, não se pode dizer que a maior parte das doenças autoimunes têm cura. Mas há a possibilidade de controle por meio dos tratamentos. “Quanto mais precoce, mais cedo for feito foi feito o diagnóstico e for instituída a terapia adequada, maior a chance de um indivíduo ficar completamente bem”, disse.

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