Vídeo de Bolsonaro com indígenas não prova que ele cuidou de Yanomamis; visita foi rechaçada à época

Bolsonaristas usam trecho de vídeo de 2021 para buscar isentar ex-presidente de responsabilidade sobre crise humanitária; na época, viagem recebeu cartas de repúdio assinadas por lideranças do Alto Rio Negro

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Por Clarissa Pacheco
Atualização:
9 min de leitura

Um vídeo que mostra parte da visita de Jair Bolsonaro (PL) a indígenas Yanomami no Amazonas, em 2021, está sendo compartilhado nas redes para argumentar que o ex-presidente “cuidou dos índios”. No entanto, a visita não teve apoio de entidades representativas dos indígenas – na realidade, foi amplamente repudiada por lideranças da região. No vídeo, Bolsonaro diz que respeita os Yanomamis e assegura que não haveria mineração na terra indígena se eles não quisessem. Mas não foi isso que ocorreu. O Estadão mostrou que coronéis da reserva do Exército nomeados pelo governo Bolsonaro para a diretoria do Ibama tiveram em mãos um plano de ação para retirar garimpeiros da terra Yanomami, mas nunca o executaram. O Ministério Público Federal em Roraima acusa o governo de omissão.

A crise humanitária e de saúde afeta Yanomamis brasileiros que vivem, sobretudo, em Roraima. Leitores do Estadão Verifica pediram a checagem do vídeo por WhatsApp, no número (11) 97683-7490.

 Foto: Reprodução

As imagens registram um encontro ocorrido dentro do 5º Pelotão de Fronteira do Exército, que fica na comunidade Maturacá, dentro da Terra Indígena Yanomami (TIY). Foi a primeira vez que Bolsonaro visitou uma terra indígena – ele esteve no local para inaugurar a ponte de madeira Rodrigo e Cibele, em São Gabriel da Cachoeira (AM), onde fica a comunidade e a TIY. Mas a presença do então presidente foi repudiada por lideranças indígenas antes e depois da visita.

A viagem ganhou os noticiários pelo Brasil porque naquela ocasião, no auge da pandemia, Bolsonaro retirou a máscara para cumprimentar indígenas e defendeu o “kit covid”, cuja ineficácia já foi comprovada. Além disso, também foi notícia o fato de o deputado federal Elias Vaz (PSB-GO) ter divulgado na época os resultados de dois pedidos de informação ao governo federal: quanto tinha custado a viagem para inaugurar a ponte e quanto tinha sido pago pelo equipamento em si: a ponte custou R$ 255 mil, e o governo informou ter pago R$ 711 mil para fazer a inauguração, quase o triplo.

A primeira reação contrária à visita de Bolsonaro à terra Yanomami surgiu em uma carta de repúdio assinada por 40 lideranças indígenas do povo Baniwa, da Terra Indígena do Alto Rio Negro, na mesma região onde fica o local visitado por Bolsonaro. No texto, republicado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), eles repudiaram tanto a presença do então presidente da República, quanto “sua pauta anti-indígena e anti-meio ambiente de abertura das terras indígenas à exploração mineral e outras atividades econômicas predatórias e destrutivas”. A carta, datada de 26 de maio de 2021, se encerra com uma manifestação de solidariedade aos povos Yanomami e Mundurucu, que já sofriam com a invasão de garimpeiros em suas terras.

Após a visita, foi a vez da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) repudiar o ato. A carta, de 28 de maio de 2021, dizia que Bolsonaro fez da visita um “palanque para fotos e vídeos de sua campanha eleitoral” e sequer convidou para o diálogo as lideranças indígenas reconhecidas. Para a FOIRN, o ex-presidente demonstrou desprezo pelo povo indígena e até inventou uma etnia inexistente – ele chamou os indígenas de “balaios”. “Ao invés de convidar as lideranças e instituições reconhecidas e comprometidas com o coletivo, privilegiou uma agenda com líderes autoproclamados, como ocorreu na Terra Indígena do Balaio, para mais uma vez produzir fake news e narrativas grotescas sobre nosso povo e nossa cultura”, diz a carta da FOIRN.

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Pelo Facebook, a Hutukara Associação Yanomami também se manifestou após a visita, afirmando que Bolsonaro havia enganado os Yanomamis do Maturacá. A entidade questionou se o fato de receber presentes tornava o tornava amigo e declarou que os povos indígenas estavam sofrendo com os invasores do garimpo ilegal. A postagem se encerrava com as hashtags “forabolsonaro” e “foragenocidio”.

No dia seguinte à visita, o professor Yanomami Valdemar Lins postou em seu Instagram uma foto do momento em que uma liderança indígena se dirige a Bolsonaro para entregar um documento. Na legenda, afirmou que era uma carta de reivindicações e um pedido de respeito:

Falas sobre mineração e garimpo

As primeiras palavras de Bolsonaro no vídeo são sobre respeito aos Yanomamis. Ele diz: “Senhores Yanomamis, nós respeitamos vocês. A vontade de vocês será feita. Vocês não querem mineração? Não terá mineração”. Na sequência, afirma que outros indígenas fora da Amazônia desejam minerar a terra serão respeitados. “Jamais aprovaríamos uma lei onde seria obrigado que a terra fosse explorada por quem quer que seja. Isso não acontecerá”, completa. A manifestação dá a entender que o assunto da mineração – legal ou ilegal – na Terra Indígena Yanomami estava encerrado, mas não foi o que aconteceu.

“A situação não é tão simples quanto o ex-presidente Bolsonaro faz parecer em sua fala neste vídeo. Apesar de afirmar que se eles, os Yanomami, ‘não querem a mineração, não terá mineração’, sabemos que na prática a realidade foi e é outra”, afirma Priscilla Oliveira, pesquisadora da ONG Survival Internacional, que trabalha em parceria com povos indígenas para protegê-los, assim como suas terras.

“A atuação do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami - que é a razão pela qual essa crise de saúde catastrófica que estamos vendo agora está acontecendo – já existia antes do governo Bolsonaro. Porém, é inegável que com ele a situação piorou drasticamente e o garimpo ilegal na terra Yanomami tomou outra proporção”, diz Priscilla.

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Para a pesquisadora, o ex-presidente Bolsonaro não só foi omisso, como seu governo incentivou a expansão da atual crise humanitária. “Bolsonaro encorajou a abertura do território e incentivou a entrada de milhares de garimpeiros; desmantelou o serviço de saúde indígena; aplaudiu a expansão do garimpo; e ignorou os apelos desesperados de organizações indígenas, da Survival e de muitos outros quando a escala dessa crise ficou clara”, completa.

A liderança indígena Dzoodzo Baniwa (Juvêncio Cardoso), que também assinou a carta de repúdio à visita de Bolsonaro em 2021, disse ao Estadão Verifica que a crise humanitária que afeta os Yanomami agora é consequência do garimpo ilegal, incentivado pelo governo anterior. “Ele [Bolsonaro], nas falas dele, sempre defende essa forma de desenvolvimento predatória, inclusive incentivando essa invasão territorial. No vídeo, ele disse que [a mineração] é ‘se os indígenas querem’. No entanto, o povo Yanomami não quer garimpo em sua terra indígena, assim como outros povos aqui no Alto Rio Negro. Se fosse obedecida a decisão do povo Yanomami de não querer garimpo em sua terra indígena, também não poderia ocorrer essa situação em que se encontra o povo Yanomami. Portanto, tem sim essa responsabilidade do governo Bolsonaro sobre a situação do povo Yanomami em Roraima”, diz.

Nesta quinta-feira, 26, o Estadão mostrou que coronéis da reserva do Exército nomeados pelo governo Bolsonaro para diretoria do Ibama tiveram em mãos um plano e ação para retirar os garimpeiros da terra Yanomami, mas nunca o executaram. O Estadão também mostrou que, segundo o procurador da República em Roraima Alisson Marugal, as operações do governo eram feitas para não funcionar – tinham ciclos de cinco a dez dias e informações vazadas aos garimpeiros.

O relatório Yanomami Sob Ataque, publicado pela Hutukara Associação Yanomami no ano passado mostra que, em 2021, a destruição provocada pelo garimpo na Terra Indígena Yanomami cresceu 46% com relação a 2020, mesmo que a posição dos Yanomami seja contrária à exploração. “O garimpo não apenas tem crescido em área, mas também tem se espalhado para novas regiões do território yanomami”, diz o relatório.

O presidente da FOIRN na época da visita, Marivelton Barroso, do povo Baré, disse que Bolsonaro ignorou os problemas do indígenas e “sequer fez menção ao combate ao garimpo ilegal, narcotráfico e outros assuntos graves que assolam as terras indígenas aqui na região da tríplice fronteira com a Venezuela e Colômbia”.

Bolsonaro durante visita a reserva Yanomami. Foto: Marcos Correa/Handout via REUTERS

Projeto de lei citado não garante respeito à vontade dos indígenas

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Sem entrar em detalhes, Bolsonaro faz referência durante a fala no vídeo a um projeto de lei e diz que quem vai explorar a mineração no local é a “etnia”: “A etnia que quiser explorar, explora. Quem não desejar, não será explorado”. Ele se referia, provavelmente, ao Projeto de Lei 191/2020, apresentado pelo Executivo, que viabilizava a exploração mineral em terras indígenas, que ainda tramita no Congresso.

Pela proposta, a exploração mineral em terras indígenas precisaria ser aprovada pelo Congresso Nacional, por meio de decreto legislativo, mediante consulta às comunidades indígenas afetadas. Diferentemente do que diz Bolsonaro, contudo, o projeto não diz que a “etnia” é quem vai explorar a mineração no local, e sim que era poderá ter participação nos resultados, se houver aproveitamento.

O capítulo VI do texto apresentado pelo Executivo diz que, na hipótese de aproveitamento de potenciais de energia hidráulica, a comunidade receberia 0,7% do valor da energia elétrica produzida; em caso de aproveitamento de lavra de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos, a participação seria de 0,5% a 1% da produção, a critério da Agência Nacional do Petróleo (ANP); e na hipótese de lavra de outros recursos minerais, 50% do valor da compensação financeira.

Também não é verdade, de acordo com o projeto, que a exploração só seria feita no local se os indígenas concordarem. O texto enviado pelo Executivo ao Congresso diz, no parágrafo 1º do artigo 14, que “o Presidente da República considerará a manifestação das comunidades indígenas afetadas para a realização das atividades”, enquanto o parágrafo seguinte afirma que o pedido de autorização poderá ser encaminhado mesmo “com manifestação contrária das comunidades indígenas afetadas”.

Diversas lideranças indígenas consideram equivocada a ideia difundida pelo governo passado de que a mineração é benéfica para as comunidades de povos originários. “Para nós Baniwa é um equívoco entender que a exploração mineral seja solução para o desenvolvimento dos povos indígenas. A instalação de empreendimentos minerários provocaria um fluxo migratório para o interior das terras indígenas, deslocaria os povos tradicionais de seus locais de origem e impactaria o meio ambiente”, diz um trecho da carta assinada por 40 lideranças Baniwa em 26 de maio de 2021.

Falas sobre saúde indígena

Também durante a visita a São Gabriel da Cachoeira em 2021, Bolsonaro prometeu intensificar a fiscalização sobre os recursos da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI): “O dinheiro da saúde indígena, vamos fiscalizar de modo que ele seja aplicado realmente na saúde de vocês”, diz. Entretanto, o relatório Yanomami Sob Ataque, publicado em abril de 2022, denuncia que havia desvio de medicamentos que deveriam ser destinados aos indígenas, mas teriam ido para garimpeiros.

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Em novembro do ano passado, uma operação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal (MPF) mirou suspeitas de desvios de verba para remédios na área Yanomami – a suspeita é de só 30% dos mais de 90 tipos de medicamentos fornecidos por uma empresa contratada pelo Distrito Sanitário Indígena local (DSEI-Y) tenham sido entregues, como mostrou o Estadão.

A carta da FOIRN, que repudiou a visita de Bolsonaro exibida no vídeo aqui investigado, também criticou falas relacionadas à covid-19: “Em sua live semanal, gravada ontem no Pelotão de Fronteira de Matucará, o presidente comparou a medicina tradicional indígena com o kit Covid, tentando ridicularizar a CPI do Senado, que investiga às denúncias de prescrição de remédios sem eficácia, como a cloroquina. Mais uma vez, Bolsonaro demonstra apreço em confundir a opinião pública para se livrar de acusações graves em relação à condução da gestão da pandemia de Covid-19, que já matou [até aquele momento] mais de 450 mil brasileiros”.

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