A relação entre Kissinger e a ditadura do Brasil; leia artigo de Matias Spektor

Aparecimento de uma democracia socialista na América do Sul era uma ameaça real, e junto ao Brasil autoritário, Kissinger trabalhou com afinco para impedir tal desfecho

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Por Matias Spektor
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Henry Kissinger, recém-falecido aos cem anos de idade, foi o diplomata mais influente da segunda metade do século vinte. O enorme poder que amealhou durante os anos que esteve no comando da diplomacia dos Estados Unidos lhe deu enorme influência na geopolítica mundial, deixando um legado de grandes jogadas e muita destruição. Fascinado pelo Brasil, ele tentou, mas fracassou, transformar o país em aliado.

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Kissinger apareceu na cena ao publicar sua tese de doutorado, um estudo sobre como a Europa do século dezenove pôs fim às guerras napoleônicas (O mundo restaurado). Com um argumento simples e controverso, ele conquistou Washington. O livro argumenta que a estabilidade de qualquer sistema internacional depende de duas condições fundamentais: as grandes potências precisam acordar um entendimento comum sobre regras mínimas de coexistência e garantir supremacia inconteste em suas respectivas esferas de influência, mesmo que isso demande ferro e fogo.

Assessor de segurança nacional e secretário de Estado dos governos de Richard Nixon e Gerald Ford (1969-1977), Kissinger tentou traduzir esses princípios em política externa. Seu experimento foi um dos mais ambiciosos nos anais da diplomacia mundial, mas os resultado concreto foi grande devastação sem ganho expressivo de estabilidade para o sistema internacional.

A prioridade absoluta de Kissinger ao chegar ao poder foi resolver a guerra do Vietnã, onde as tropas americanas vinham amargando sucessivas derrotas. Para obrigar o inimigo a sentar à mesa de negociação, ele lançou uma campanha de bombardeios aéreos contra alvos não apenas militares, mas também civis. Quando isso não funcionou, ele redobrou a aposta iniciando o bombardeio secreto e ilegal de Laos e Camboja, dois países vizinhos. Sem conseguir quebrar a resistência vietnamita, Kissinger declarou vitória e bateu em retirada. Pela saída das tropas americanas, foi agraciado com o mais controverso prêmio Nobel da Paz da história.

A preocupação dele era com a credibilidade do poder dos Estados Unidos frente à União Soviética, a disputa central da Guerra Fria. À época, Moscou parecia estar em ascensão e Washington, em declínio. A implicação prática disso era que as autoridades soviéticas recusavam-se a negociar regras de coexistência com os norte-americanos. Para virar o jogo, Kissinger fez o impensável: uma aproximação entre os Estados Unidos e a China comunista de Mao. O efeito imediato foi benéfico para Kissinger: Moscou aceitou sentar para negociar com Washington. Em poucos meses, contudo, os soviéticos voltaram à ofensiva, pressionando os americanos na África, na Ásia e no Oriente Médio.

Foi isso o que ocorreu em 1973, quando países árabes liderados por Egito e Síria obtiveram apoio soviético para atacar Israel na guerra do Yom Kipur. Depois do cessar-fogo, Kissinger passou dias voando entre Tel Aviv, Cairo e Damasco para convencer todos os países a retirarem suas tropas do campo de batalha. No processo, virou a personalidade mais influente do Oriente Médio. Numa jogada exitosa, aproveitou isso para arrancar o Egito da órbita soviética e transformá-lo em aliado dos Estados Unidos. No entanto, em nenhum momento ele usou a sua autoridade ímpar para incentivar as partes a fazer a única coisa que poderia trazer paz duradoura para a região: a criação de um estado palestino ao lado de Israel.

Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger com o presidente do Egito, Anwar Sadat, em Cairo, em 1973.  Foto: Arquivo AP

No afã de dar batalha aos soviéticos, Kissinger também lançou uma ambiciosa política de engajamento com os grandes países anticomunistas do mundo em desenvolvimento: Brasil, Irã, Indonésia e África do Sul. Os quatro eram autocracias em vias de acelerada modernização econômica e urbanização. Seus regimes mantinham-se no poder não pelo voto, mas pelo uso de tortura, censura, exílio forçado, execução extrajudicial de opositores e corrupção generalizada.

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Kissinger ofereceu a cada um dos quatro a venda facilitada de armas, luz verde para a construção de programas nucleares e apoio declarado contra críticas às violações de direitos humanos. Recebeu seus representantes na Casa Branca e mobilizou Nações Unidas, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional para protegê-los.

Nos quatro casos, ele fez de tudo para transformar esses países em ponta-de-lança do combate contra o comunismo em suas respectivas regiões. A aposta, no entanto, fracassou. No Irã, uma revolução popular transformou o país num dos principais inimigos dos Estados Unidos. Na África do Sul, o apartheid colapsou diante do fracasso moral do racismo institucionalizado e de sanções impostas por terceiros países. Na Indonésia, a ocupação brutal do Timor Leste transformou o país em pária.

À ditadura brasileira, Kissinger pediu apoio para desestabilizar a democracia em lugares como Argentina, Bolívia, Chile e Uruguai. Quando esses países viraram ditaduras, ele saiu em sua defesa intensa. O aparecimento de uma democracia socialista na América do Sul era uma ameaça real, e junto ao Brasil autoritário ele trabalhou com afinco para impedir tal desfecho.

Henry Kissinger, que faleceu aos 100 anos no dia 29 de novembro, foi o diplomata mais influente da segunda metade do século 20. Foto: AP Photo/Arquivo

A ditadura brasileira remou na mesma direção, mas não deu a cooperação que Kissinger esperava. Os generais não se alinharam às demandas dele em áreas como comércio, investimento e energia nuclear. Enfurecendo-o, o regime apoiou os líderes marxistas da independência de Angola contra o colonialismo português. Indo contra Kissinger, a ditadura também condenou na ONU o sionismo como uma forma de racismo.

Kissinger foi gigante na medida em que acumulou poder e influência como nenhum outro diplomata de sua geração. Seu legado, no entanto, passa longe de ser a construção de um mundo melhor.

*Matias Spektor é professor da Escola de Relações Internacionais da FGV e autor do livro “Kissinger e o Brasil”

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