Derretimento do gelo no Ártico pode transformar região em zona de conflito entre Rússia e Otan

Mudanças climáticas, exploração comercial, militarização da região e a entrada de países nórdicos na Otan reforçam a necessidade de um olhar atento a tudo que acontece no Ártico

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Por Daniel Gateno
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Com todos os olhares voltados para a guerra na Ucrânia, o próximo conflito do continente europeu pode estar mais ao norte. Após os esforços da Otan para ajudar Kiev a se defender da Rússia, a aliança militar pode entrar em uma rota de colisão direta com Moscou na região do Ártico. Em meio ao derretimento do gelo na região, diversos países definem o oceano inexplorado como peça-chave para os seus interesses comerciais e estratégicos. Após os trâmites para a entrada da Suécia na Otan, a Rússia será o único país do Círculo Polar Ártico a não estar na aliança militar.

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Moscou já deixou claro que quer expandir a sua presença na região, assim como a China, interessada em aplicar uma “Rota da Seda Polar” no Ártico. Os países nórdicos, que acenderam o alerta em relação à Rússia após o início da guerra na Ucrânia e os constantes casos de espionagem e sabotagem, se preocupam com a segurança na região. Os Estados Unidos também mudaram a postura, reforçando os exercícios militares e abrindo um posto diplomático em Tromso, uma cidade costeira no Ártico norueguês, primeira representação diplomática na região desde os anos 90.

Com a aceleração das mudanças climáticas a área ficou mais acessível para novas rotas de transporte, bem como à extração de petróleo e gás, aumentando a visibilidade da região.

Com as mudanças climáticas o Ártico tem recebido cada vez mais atenção em virtude das possibilidades comerciais e estratégicas da região  Foto: Balazs Koranyi/ Reuters

O Ártico é dividido entre oito países, que fazem parte do chamado Conselho Ártico, fórum intergovernamental criado para cooperação e coordenação em relação a assuntos que envolvem os países do Ártico, que são Estados Unidos, Canadá, Islândia, Dinamarca, Suécia, Finlândia, Noruega e Rússia. Depois do início da guerra na Ucrânia, as atividades do grupo ficaram congeladas, por conta da recusa dos países-membros de continuarem a cooperação com a Rússia.

“A Rússia já deixou muito claro que quer desenvolver a sua parte do Ártico, o que faz com que a Otan fique preocupada com a possibilidade de uma rivalidade entre o Ocidente e Moscou na região”, aponta Marc Lanteigne, professor associado de ciência política da Universidade de Tromso, na Noruega.

Interesse

O Círculo Polar Ártico se tornou mais relevante por conta das mudanças climáticas, que permitiram que a região fosse vista com forte potencial de recursos, ampliando o interesse de países que possuem uma parcela do Ártico e também de outras nações que querem explorar o que o Ártico tem a oferecer, como a China.

Segundo um estudo publicado pelo grupo de especialistas em clima da ONU em agosto do ano passado, a região do Círculo Polar Ártico aqueceu a uma taxa quatro vezes mais rápida do que o resto do planeta nos últimos 40 anos. Outra pesquisa de novembro de 2022 que foi publicada pela ICCI (Iniciativa Climática Internacional da Criosfera) aponta que as emissões de gases estufas podem derreter todo o gelo do Ártico até 2050.

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“Estamos vendo mudanças muito rápidas no ambiente, com mais possibilidade de navegação. Algumas décadas atrás seria completamente impossível cogitar a exploração de recursos do Ártico, mas agora os países estão mais interessados nestes recursos”, avalia Lanteigne.

Mudanças climáticas estão abrindo espaço para especulações no Ártico em relação a novas rotas marítimas e exploração dos recursos naturais  Foto: Lisi Niesner/ Reuters

Segundo dados do Instituto Americano de Geociências, a região do Ártico possui 90 bilhões de barris de petróleo (16% do total global) e 44 bilhões de gás natural líquido (38% do globo).

Para o professor de política externa finlandesa do Instituto Finlandês de Relações Exteriores, Harry Mikkola, as mudanças climáticas no Ártico podem trazer consequências severas globalmente, mas o derretimento do gelo pode encurtar as rotas marítimas entre Ásia e Europa.

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De acordo com Paal Sigurd Hilde, professor de estudos de guerra do Instituto Norueguês para Estudos de Defesa, a atenção dada à região do Círculo Polar Ártico é exagerada. “É muito caro extrair petróleo e gás no Ártico, é obviamente mais fácil fazer isso de países como a Arábia Saudita, então muitas expectativas em torno de petróleo e gás no Ártico não vão acontecer”, analisa o especialista.

Hilde destacou também que o tráfego marítimo no Ártico segue muito baixo, apesar da possibilidade de rotas comerciais mais curtas. “Neste momento isso não se concretizou, mas é claro que em 20 anos, quando não tiver mais gelo, pode ser que isso se torne realidade.”

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, visita a região do Ártico russo em março de 2017  Foto: Alexei Druzhinin /Reuters

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Rússia

O interesse da Rússia no Ártico é antigo e a região é palco de atividades militares desde a época da guerra fria. Para o professor de estudos de guerra do Instituto Norueguês para Estudos de Defesa, Moscou acreditava que em caso de uma 3° Guerra Mundial entre União Soviética e Estados Unidos, os soviéticos lançaram mísseis e bombardeiros do Círculo Polar Ártico para atacar o território americano.

“Essa é a rota mais curta entre o território russo e o americano, então era uma região militarmente importante na época da guerra fria e estava totalmente militarizada por Washington e Moscou, principalmente com radares que detectassem ataques”, explica o especialista em defesa.

Apesar de Moscou estar totalmente voltada para a guerra na Ucrânia, a Rússia continua sendo uma vasta potência na região, com bases navais e mísseis nucleares estacionados no Extremo Norte, mas também ao longo da borda ocidental da Rússia: na Península de Kola, perto da Noruega, onde Moscou mantém a maioria de seus submarinos com armas nucleares, e em Kaliningrado, que faz fronteira com Polônia e Lituânia.

“A Rússia colocou muita ênfase em sua parcela do Ártico, a Sibéria e o extremo leste, como um eixo muito importante para a sua economia. O país transferiu muitos recursos para lá e começou a mover militares e reabrir bases da guerra fria, o que causa preocupação de que podemos estar vendo uma militarização do Ártico. Juntando tudo isso, é compreensivo que a região esteja recebendo mais atenção neste momento”, aponta Lanteigne, da Universidade de Tromso.

Moscou também está envolto em reivindicações de territórios no Ártico, como a Cordilheira de Lomonosov, território disputado com o Canadá e a Dinamarca. Em 2007, uma expedição russa foi até a região e fincou uma bandeira do país no fundo do Ártico com o auxílio de dois submarinos, sinalizando um recado de que o país quer expandir a sua presença no Círculo Polar Ártico. Moscou também chegou a ter divergências de fronteira com a Noruega no Ártico, mas os dois países chegaram a um acordo em 2010.

China

Apesar de não ser um país que possui uma parcela do Ártico, a China também tem interesse na região, principalmente para desenvolver uma chamada “Rota da Seda Polar” e reduzir as distâncias para o comércio global.

Pequim se declara como sendo “quase” um país ártico e participa do chamado Conselho Ártico como um Estado observador.

De acordo com Mikkola, a China quer se aproveitar do posto de principal aliado político e econômico da Rússia e do isolamento internacional de Moscou por conta da guerra na Ucrânia para barganhar a possibilidade de usar o território russo no Ártico como parte da estratégia para novas rotas.

“A Rússia não tem outra chance senão recorrer à China para um melhor funcionamento de sua economia, então com o derretimento do gelo e novas rotas marítimas no Ártico, Pequim vai explorar esta posição sobre a Rússia”, explica o especialista. “Esta expansão chinesa preocupa os Estados Unidos principalmente por conta do Alasca e da possibilidade de espionagem chinesa”, acrescenta Mikkola.

O presidente da China, Xi Jinping, e o presidente da Rússia, Vladimir Putin, posam para uma foto após uma reunião bilateral em Moscou, Rússia  Foto: Evgenia Novozhenina/Reuters

Conselho Ártico

Depois da guerra na Ucrânia, os trabalhos do Conselho Ártico ficaram limitados e o diálogo com a Rússia foi rompido. O fórum intergovernamental, que foi criado em 1996, tinha a Rússia como presidente rotacional até maio deste ano, o que dificultou ainda mais o diálogo, mas o cargo foi passado para a Noruega, como é de praxe depois de dois anos. A última reunião do fórum foi realizada em 2021, em Reykjavik, capital da Islândia, país que ocupava a presidência do conselho na ocasião.

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“Os membros do Conselho do Ártico suspenderam o contato com a Rússia após a guerra na Ucrânia, congelando o funcionamento do fórum porque a Rússia ocupava a presidência do conselho até maio deste ano. A Noruega assumiu o grupo e o governo noruegues já afirmou que vai tentar manter o trabalho diário do conselho, botando a área ambiental como prioridade, mas é uma situação muito delicada”, explica Lanteigne.

Mikkola, do Instituto Finlandês de Relações Exteriores, destaca que o conselho passou a tocar projetos que não envolviam as regiões russas do Ártico e a presidência do fórum foi passada de Moscou para Oslo sem nenhum alarde. “Antes existia uma cerimônia formal para que a presidência rotativa fosse passada de um país para o outro, mas os russos passaram a presidência para a Noruega em uma cerimônia virtual, com a presença de diplomatas”, apontou o especialista.

Países do Conselho Ártico participam de reunião em Rovaniemi, Finlândia, no dia 7 de maio de 2019  Foto: Mandel Ngan / Reuters

Espionagem

A região também é conhecida por vários casos de espionagem, principalmente envolvendo a Rússia e os países nórdicos. Em outubro de 2022, a agência de segurança doméstica da Noruega prendeu o pesquisador José Assis Gianmaria sob a suspeita de que ele era um espião russo.

Gianmaria, que foi identificado como o russo Mikhail Mikushin, de 44 anos, trabalhava na Universidade de Tromso e entrou na Noruega com um passaporte brasileiro. Ele veio para o centro de ensino com o intuito de pesquisar sobre segurança no Ártico. A universidade é a mesma que Marc Lanteigne, entrevistado pelo Estadão, trabalha no país nórdico.

Lanteigne aponta que conheceu Gianmaria, mas nunca suspeitou de que ele era um espião russo. “Eu conheci ele em conferências e no trabalho diário que fazíamos na universidade, o caso está em andamento neste momento e eu estou muito curioso para saber como vai acabar, mas isso realmente demonstra o problema que estamos vivendo em relação a segurança no Ártico neste momento”, avalia o professor.

Uma placa na entrada de Barentsburg, no arquipélago norueguês de Svalbard, no Círculo Polar Ártico  Foto: Erin Schaff/ NYT

“Eu não conhecia exatamente o sotaque brasileiro, então foi difícil desconfiar de que ele poderia não ser brasileiro, mas todos ficamos muito chocados, não havia nenhum sinal especifico”, completa o especialista.

De acordo com uma investigação feita em abril por emissoras de TV públicas de Noruega, Dinamarca, Suécia e Islândia, a Rússia teria uma frota de navios instalada no Mar do Norte para sabotar parques eólicos, tubulações de gás e cabos de comunicação de países nórdicos.

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Segundo a investigação, a frota russa se disfarça de navios de pesquisa ou de arrastões de pesca e carrega equipamentos de vigilância subaquática e mapeamento da área, com o objetivo de planejar ataques para danificar as comunicações ou derrubar sistemas de energia. No mesmo mês, Oslo expulsou 15 diplomatas russos para Moscou.

Possível conflito

Os especialistas entrevistados pelo Estadão foram categóricos ao afirmarem que um conflito entre a Rússia e os países da Otan no Ártico não deve ocorrer enquanto a guerra na Ucrânia estiver acontecendo.

“Como a parte russa do Ártico é muito importante estrategicamente para a Rússia, eles não querem que a presença militar aumente na região, querem proteger os submarinos nucleares que estão na Península de Kola. Além disso, Moscou quer explorar o potencial econômico do Ártico e não é possível fazer isso se algum conflito estiver ocorrendo na região”, avalia Paal Sigurd Hilde do Instituto Norueguês para Estudos de Defesa. “Se algum conflito começar em outro lugar, como nos países bálticos, é possível que se espalhe para o Ártico”, ponderou o especialista.

Navio russo passa pelo Circulo Polar Ártico, que está sofrendo com diversas mudanças climáticas que podem abrir novas rotas marítimas e uma maior exploração comercial  Foto: Eszter Horvath/ NYT

Para Lanteigne, da Universidade de Tromso, o Ártico não será palco de um conflito nos mesmos moldes da guerra na Ucrânia, mas as consequências do relacionamento entre Moscou e o Ocidente já prejudicam a região. “A deterioração na relação entre o Ártico e o Ocidente torna muito mais difícil a cooperação em relação a mudanças climáticas, a militarização da região e a exploração comercial”, destacou o professor.

De acordo com Mikkola, do Instituto Finlandês de Relações Exteriores, a região do Ártico está mudando por conta da entrada da Finlândia da Otan e a adesão da Suécia à aliança militar, que já foi acordada entre os membros. “A realidade geopolítica do norte está mudando completamente. O Ártico não deve ser o ponto de partida de nenhum conflito, mas por tudo que está em jogo, a região será sempre um ponto crítico”.

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