Egito teme deslocamento forçado de civis cercados na Faixa de Gaza por Israel

País assinou acordo de paz com Israel há décadas, que poderia ser ameaçado caso aceite a entrada de milhares de refugiados; condições de vida na Faixa de Gaza seguem se deteriorando

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Por Claire Parker e Michael Birnbaum

CAIRO — Desde o início da guerra em Gaza, o Egito manteve firme sua determinação em não aceitar refugiados palestinos. Mas à medida que Israel avança com sua ofensiva no sul de Gaza, empurrando milhares de palestinos em direção ao Egito, a pressão na fronteira cresce. As condições estão propícias para erros de cálculo, afirmam ex-diplomatas árabes e analistas, e a guerra poderá acabar forçando o governo egípcio a aceitar civis deslocados de Gaza — ameaçando uma paz de décadas entre Israel e Egito.

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Desde que Israel lançou sua guerra retaliatória em Gaza após os ataques do Hamas em 7 de outubro, cerca de 20 mil palestinos foram mortos e mais de 50 mil, feridos, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza. Bairros inteiros do enclave estão em ruínas. As Nações Unidas estimam que 85% de seus 2,2 milhões milhões de habitantes foram deslocados — obedecendo orientações de Israel para fugir para lugares seguros mas com frequência acabando em outros campos de batalha.

Muitos se abrigam na cidade mais ao sul em Gaza, Rafah, ao longo da fronteira com o Egito, onde vivem em residências, escolas e acampamentos. Outros dormem nas ruas. Doenças estão se espalhando. A ajuda está longe de ser suficiente para atender as necessidades básicas dos civis, e os bombardeios de Israel têm atrapalhado a entrega.

“Os israelenses deram garantias de que nenhuma ação militar adotada transbordaria para o lado egípcio da fronteira, mas a situação humanitária é terrível”, afirmou um ex-diplomata egípcio, falando sob condição de anonimato para discutir um assunto sensível de segurança.

Palestinos que fugiram da cidade de Khan Younis após combates entre o Hamas e Israel chegam à Rafah, próxima à passagem entre a Faixa de Gaza e o Egito; foto tirada no dia 5 de dezembro de 2023 Foto: SAID KHATIB / AFP

“Ainda existe o prospecto de um fluxo de palestinos de Gaza para o Sinai”, acrescentou o ex-diplomata. “Isso acontecer como resultado de uma estratégia militar israelense ou por negligência pode ser uma distinção sem diferença.”

Conforme o país reforça sua fronteira no norte do Sinai, graduados enviados egípcios estão dobrando a aposta em esforços para evitar um cenário assim e pressionar por um cessar-fogo.

O Egito ofereceu abrigo seguro para milhões de pessoas que fugiram de conflitos recentes no Sudão, na Líbia, no Iêmen e na Síria. Mas o deslocamento massivo de palestinos ocorrido durante a fundação de Israel, em 1948, conhecido em árabe como Nakba, ou “catástrofe”, ainda permanece fortemente marcado na psique regional. Governos árabes temem que Israel não permita aos palestinos que deixarem Gaza retornar depois da guerra.

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Declarações de algumas figuras da política israelense pedindo a remoção dos palestinos do enclave intensificaram essa preocupação — assim como um documento do ministério de inteligência de Israel, vazado em outubro, que parecia propor uma transferência permanente para o Egito. Grupos de colonos radicais, apoiadores cruciais do governo de direita do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, estão realizando conferências para pressionar Israel a voltar a erguer assentamentos em Gaza.

Netanyahu e altas autoridades de defesa sustentam que o objetivo militar de Israel é derrotar o Hamas, não expulsar os palestinos do enclave.

Mas “essa ideia é considerada por alguns dos líderes de direita uma opção real”, afirmou Ksenia Svetlova, pesquisadora sênior não residente do Atlantic Council e ex-integrante do Parlamento de Israel, a Knesset. “Eles não entendem a complexidade, desconsideram os riscos e não percebem quão delicada é a dinâmica da relação entre Israel e Egito, uma dinâmica que vale a pena preservar.”

Com a opinião pública no Egito completamente favorável à causa palestina, graduadas autoridades daqui têm deixado claro desde 7 de outubro que o Cairo não será cúmplice de outro deslocamento em massa. O Egito facilitou a saída de milhares de estrangeiros e palestinos associados a entidades estrangeiras através do posto fronteiriço de Rafah desde o fim de outubro, mas quem atravessa só pode permanecer poucos dias no Egito.

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O Cairo também preocupa-se com a própria segurança, diante da possibilidade de militantes do Hamas atravessarem para o norte do Sinai.

“Nós rejeitamos o deslocamento de palestinos de sua terra”, afirmou o presidente do Egito, Abdel Fatah El-Sisi, em meados de outubro, alertando que deslocar os cidadãos de Gaza significaria “transferir os ataques contra Israel para o território egípcio, o que ameaça a paz entre Israel e um país de 105 milhões de habitantes”.

O governo Biden ficou preocupado com discussões em Israel nos primeiros dias da guerra sobre tentar empurrar os palestinos de Gaza para o Egito, e o secretário de Estado Antony Blinken e outros líderes reagiram duramente, segundo afirmaram três altas autoridades americanas ao Washington Post, falando sob condição de anonimato para revelar conversas sensíveis.

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Abdel Fattah el-Sisi, reeleito presidente do Egito em dezembro; El-Sisi governa o país há dez anos após um golpe de Estado e se opõe ao Hamas Foto: Khaled Desouki/NYT

“Os EUA acreditam” que qualquer eventual acordo de paz “não deveria incluir nenhum deslocamento forçado de palestinos de Gaza — nem agora nem depois da guerra”, afirmou Blinken no mês passado.

O apoio de Biden a Israel poderia cobrar um preço da política externa dos EUA.

Graduadas autoridades americanas, europeias e árabes que têm trabalhado proximamente com contrapartes egípcias afirmam que a posição do Cairo sobre o assunto é inabalável.

“Nunca houve ambiguidade ou equívoco da parte dos egípcios a respeito do deslocamento dos palestinos de Gaza para território egípcio”, afirmou um experiente diplomata americano, falando sob condição de anonimato para discutir negociações delicadas.

“Qualquer ambiguidade sobre isso é radioativa no Egito”, acrescentou o diplomata.

Mas as condições dentro de Gaza se deterioraram substancialmente depois de mais de dois meses de guerra.

Condições de vida seguem se deteriorando na Faixa de Gaza Foto: MOHAMMED ABED / AFP

Thaer Abu Aoun, de 35 anos, da Cidade de Gaza, foi deslocado duas vezes. Ele, sua mulher e seu filho de 2 anos vivem agora numa tenda em Rafah. A comida é escassa, e a família foi obrigada a beber água suja, disse ele ao Post, pelo telefone, na segunda-feira. Seu filho, Fares, tem febre constante e está apavorado com as frequentes explosões.

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Abu Aoun disse temer que a operação terrestre de Israel logo espalhe combates e caos em Rafah. “Daí não teremos mais para onde correr”, afirmou ele. “Eu sou totalmente contra deixar Gaza”, disse, classificando o deslocamento como “ilegal e desumano”. Mas “se as fronteiras forem bombardeadas, ficarem abertas para mim, e eu não sentir mais que este lugar é seguro para mim e minha família, eu não hesitarei em salvar minha família e ir para o Egito”.

O Egito parece estar sentindo a pressão e despachou para Washington seu ministro das Relações Exteriores, Sameh Shoukry, anteriormente este mês, para reiterar a posição do Cairo. O Egito também liderou uma proposta de resolução não vinculante na Assembleia Geral da ONU, aprovada majoritariamente, pedindo um cessar-fogo imediato.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse a formuladores de políticas globais em Doha que “a ordem pública logo se romperá completamente” em Gaza, o que contribuirá para “maior pressão para o deslocamento em massa para o Egito”.

Uma violação da fronteira não seria inédita: em 2008, milhares de palestinos atravessaram para o Egito temporariamente após militantes do Hamas abrirem com uma explosão um buraco no muro fronteiriço.

“Foi um momento realmente traumático para os egípcios, e eles não querem que esse evento se repita. Portanto eu estou bastante certo de que ambos os lados estão muito bem coordenados” à medida que o Exército israelense ruma para o sul, afirmou Michael Milshtein, ex-conselheiro da Coordenadoria de Atividades Governamentais nos Territórios, a agência do governo israelense que coordena as políticas civis de Israel na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

Mas se os palestinos acudirem à fronteira, “no fim das contas você não pode deixar as pessoas morrerem”, afirmou um ex-diplomata árabe, falando sob condição de anonimato para discutir deliberações sensíveis. “Posição política é uma coisa, mas o que é forçado e as necessidades em campo são outra história.”

Nesse advento, acrescentou o ex-diplomata, o Egito provavelmente buscaria garantias dos EUA e de Israel de que qualquer deslocamento de palestinos seria temporário.

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Enquanto isso, o governo egípcio construiu um muro de concreto e barreiras de terra ao longo da fronteira, de acordo com imagens em vídeo publicadas no sábado pela Fundação Sinai por Direitos Humanos, um grupo de monitoramento com base no Reino Unido que mantém uma equipe no norte do Sinai. Os militares também aumentaram sua presença. Durante duas visitas em outubro, a reportagem do Post viu linhas de tanques e veículos militares posicionados ao longo da estrada para Rafah.

Conforme as tensões crescem ao longo da fronteira, a relação entre Cairo e Israel — fortalecida por meio de uma cooperação próxima em segurança nos anos recentes — arrisca se romper, de acordo com Mirette Mabrouk, diretora do programa de estudos egípcios no Middle East Institute, sediado em Washington, DC. “Não é do interesse de Israel desestabilizar o Egito de nenhuma maneira”, afirmou ela. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL E GUILHERME RUSSO

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