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Ideias de ‘guerra civil’ nos EUA incendeiam redes sociais após operação na casa de Trump

Pesquisas, redes sociais e aumento das ameaças sugerem que um número crescente de americanos antecipa a possibilidade de violência política

Por Ken Bensinger e Sheera Frenkel
Atualização:

Logo depois de o FBI realizar uma operação de busca e apreensão na casa de Donald Trump, na Flórida, atrás de documentos secretos, pesquisadores se concentraram em uma tendência preocupante nas redes.

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Publicações no Twitter mencionando uma “guerra civil” dispararam quase 3.000% em questão de horas, com apoiadores de Trump acusando a operação de ter como objetivo provocar o ex-presidente. Saltos semelhantes foram vistos no Facebook, Reddit, Telegram, Parler, Gab e Truth Social, a rede social de Trump. Menções à expressão mais que dobraram em programas de rádio e podcasts, de acordo com dados da Critical Mention, uma empresa de monitoramento de mídia.

Semanas depois, publicações com “guerra civil” dispararam novamente após o presidente Joe Biden qualificar Trump e os “Republicanos MAGA (sigla em inglês para “Façam os EUA Grandes Novamente”, slogan de Trump)” de ameaça às “próprias fundações de nossa república”, em um discurso sobre a democracia na Filadélfia.

Discurso de Donald Trump no primeiro comício após a operação de busca e apreensão do FBI em Mar-a-Lago, em imagem do dia 3 de setembro Foto: Hannah Beier/NYT

Agora especialistas se preparam para novas discussões sobre guerra civil, semanas antes das eleições legislativas e estaduais de 8 de novembro, momento em que os discursos políticos se tornam mais exaltados e acirrados.

Mais de um século e meio depois do fim da Guerra Civil Americana verdadeira, o mais violento conflito da história dos EUA, as referências a uma nova guerra civil se tornaram lugar comum na direita. Embora o termo seja usado de maneira dispersa em alguns casos, como em uma analogia à crescente divisão partidária no país, especialistas afirmam que, para alguns, a expressão é bem mais do que uma metáfora.

Pesquisas, redes sociais e o aumento das ameaças sugerem que um número crescente de americanos antecipa, ou mesmo vê com bons olhos, a possibilidade de violência política, apontam pesquisadores que estudam o extremismo. Mas o que anteriormente era tema de discussão apenas na periferia política está ganhando espaço no palco central da política.

Mas enquanto a tendência é clara, há menos consenso entre os especialistas sobre o seu significado.

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Alguns elementos na extrema direita veem isso de forma clara: uma convocação para uma batalha organizada pelo controle do governo. Outros preveem algo parecido com uma insurgência visceral, com eventuais erupções de violência política, como o ataque ao escritório do FBI em Cincinnati, em agosto. Um terceiro grupo descreve o país como prestes a entrar em uma guerra civil “fria”, manifestada pela crescente polarização e falta de confiança, em vez de uma guerra “quente”, com conflitos.

Mas as conversas sobre violência política não estão restritas a fóruns anônimos na internet.

‘Inimigos do Estado’

Em um comício de Trump no Michigan, no sábado, a deputada Marjorie Taylor Greene disse que “os democratas querem ver os republicanos mortos”, acrescentando que “Joe Biden declarou que todos os americanos que amam a liberdade são inimigos do Estado”. Em um evento de arrecadação, Michael Flynn, que serviu como conselheiro de Segurança Nacional de Trump, disse que os governadores têm o poder de declarar guerra, e que “provavelmente veremos isso”.

Na segunda-feira, 3, procuradores federais mostraram, diante de um júri em Washington, uma mensagem criptografada que Stewart Rhodes, fundador da milícia extremista Oath Keepers, mandou para seus subordinados dois dias antes da eleição presidencial de 2020: “Nós não vamos sobreviver a isso sem uma guerra civil”.

Especialistas dizem que o padrão belicoso dos discursos ajudou a normalizar a expectativa de que haverá violência política.

Fundador da milícia Oath Keppers, Stewart Rhodes, se comunica através de rádio com outros participantes em comício de Donald Trump, em imagem do dia 10 de outubro de 2019, em Minneapolis Foto: Jim Urquhart/Reuters

No final de agosto, uma pesquisa com 1,5 mil adultos conduzida pelo instituto YouGov e pela revista Economist apontou que 54% dos entrevistados que se identificaram como “republicanos convictos” acreditavam que uma guerra civil era algo provável na próxima década. Apenas um terço dos entrevistados disse que tal cenário era improvável. Uma pesquisa semelhante, realizada pela revista e pelo YouGov há dois anos, revelou que três em cada cinco entrevistados acreditavam que uma “ruptura no modelo de uma guerra civil nos EUA” era algo pouco ou muito improvável.

“O que vemos aqui é uma narrativa antes limitada aos campos radicais, mas hoje está em um lugar central no diálogo político”, disse Robert Pape, professor de Ciências Políticas na Universidade de Chicago e fundador do Projeto Chicago sobre Segurança e Ameaças.

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Os pesquisadores do instituto rastrearam tuítes mencionando “guerra civil” antes e depois de Trump anunciar a busca em Mar-a-Lago. Nos cinco dias anteriores, o termo foi mencionado em cerca de 500 tuítes por hora. Esse número saltou para seis mil na primeira hora depois do anúncio de Trump, feito no Truth Social, na tarde de 8 de agosto, quando afirmou que “estes são tempos obscuros para nossa nação”. O ritmo chegou ao ápice de 15 mil tuítes por hora naquele mesmo dia. Uma semana depois, as menções ainda eram seis vezes mais numerosas do que antes do anúncio, e a expressão estava novamente nos assuntos mais comentados no Twitter ao final do mês.

Grupos extremistas vêm defendendo algum tipo de derrubada de governos há anos, disse Pape, e as visões mais radicais — aquelas ligadas à supremacia branca e ao fundamentalismo religioso — seguem à margem, e não contam com mais de 50 mil adeptos em todo o país.

Ideias [nas redes sociais] são jogadas em uma câmara de eco, e é a única voz a ser ouvida; não há vozes dissidentes

Kurt Braddock, professor da Universidade Americana

Mas um grupo bem maior, disse, é composto por pessoas que foram influenciadas pelas queixas de Trump sobre o “pântano de Washington” e as forças do “Estado profundo” que trabalham contra ele e seus aliados.

Essas ideias, jogadas em um caldeirão ao lado de teorias da conspiração propagadas pelo movimento Qanon, propaganda antivacina e negacionismo eleitoral, deram força a uma crescente hostilidade contra o governo federal e um discurso acalorado sobre os direitos dos estados.

Redes sociais estão infestadas de grupos e painéis dedicados a discussões sobre uma guerra civil. Uma delas, no Gab, descreve-se como um local para “relatórios de ação”, “vídeos de combate” e relatos de pessoas mortas em ação na “guerra civil que se encaminha para ser uma segunda Revolução Americana”.

Em agosto, um único tuíte dizendo “acho que a guerra civil acabou de ser declarada” teve 17 milhões de visualizações, apesar de ter sido publicado por uma conta com menos de 14 mil seguidores, de acordo com Cybara, uma empresa israelense que monitora desinformação.

“Ideias [nas redes sociais] são jogadas em uma câmara de eco, e é a única voz a ser ouvida; não há vozes dissidentes”, afirmou Kurt Braddock, professor da Universidade Americana que estuda como grupos terroristas se radicalizam e recrutam.

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Códigos

Braddock disse não acreditar que essas publicações indiquem algum tipo de planejamento para uma guerra. Mas ele se preocupa com o que acadêmicos chamam de “terrorismo estocástico” — atos aparentemente aleatórios de violência que são, de fato, provocados por “linguagens codificadas, apitos de cachorro ou outros textos subliminares”, presentes em declarações de figuras públicas.

Trump é adepto desse tipo de comunicação, diz Braddock, citando um tuíte do presidente, de agosto de 2020, no qual dizia “liberem o Michigan!”. Menos de duas semanas depois, hordas de manifestantes fortemente armados ocuparam o Capitólio estadual em Lansing, capital do estado. Ele ainda indicou o discurso de Trump antes da invasão do Congresso, em Washington, em 6 de janeiro de 2021, quando encorajou seus milhares de apoiadores a marcharem até o Capitólio, dizendo que “se não lutassem como o diabo, não teriam mais um país”.

“As declarações que Trump faz não são pedidos explícitos de ação, mas quando se têm seguidores devotos, as chances de que uma ou mais pessoas sejam mobilizadas por isso são altas”, disse Braddock. Um porta-voz de Trump não se pronunciou após pedidos de comentários.

Depois do discurso de Biden sobre a democracia, Brian Gibby, um especialista de dados independente em Charlotte, escreveu em uma publicação no Substack acreditar que “a Segunda Guerra Civil começou” com as declarações do presidente. “Nunca vi um discurso mais divisivo e cheio de ódio de um presidente americano”, escreveu Gibby.

Questionado pelo New York Times para que explicasse suas posições, Gibby disse acreditar que Biden “elevava o tom de um conflito quente nos EUA”. Ele se preocupa que algo semelhante aconteça perto das eleições de novembro, que seria “similar ao 6 de janeiro [de 2021], mas bem mais violento”, com grupos armados dos dois lados do espectro político entrando em confronto.

“Se planejem, armazenem suprimentos, fiquem a salvo, saiam das cidades se puderem”, escreveu.

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