Na Argentina, Milei consegue superávit histórico, mas pobreza avança; entenda em cinco gráficos

Governo Milei comemora o primeiro trimestre com superávit nas contas públicas em 16 anos, mas conquista pode ter vindo às custas de uma recessão

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Por Carolina Marins

O presidente da Argentina, Javier Milei, fez um pronunciamento na última segunda-feira, 22, em rede nacional para celebrar o primeiro trimestre com superávit financeiro do país desde 2008. Um feito que tem sido elogiado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e por muitos políticos e economistas defensores das necessárias medidas para tentar sanar a economia argentina.

Para muitos analistas, porém, o resultado pode ser conquistado às custas do aumento da pobreza, que afeta cerca de um milhão de novos argentinos por mês, e com uma queda recorde no consumo, causando ansiedade nos setores empresariais do país.

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“A situação que vivemos é difícil, mas também já percorremos mais da metade do caminho, este é o último trecho de um esforço heroico que nós, argentinos, estamos fazendo”, disse o presidente em uma mensagem gravada de 16 minutos que foi transmitida na noite de segunda.

Em março, a Argentina registrou um balanço positivo de suas contas públicas de mais de 600 bilhões de pesos (R$ 3,5 bilhões), fechando o trimestre com 3,8 trilhões de pesos (R$ 22 bilhões) em superávit. O governo atribuiu o sucesso à sua motosserra, que nos primeiros meses levou a uma queda de 35% nos gastos do Estado na comparação com o mesmo período do ano passado.

Televisão de um restaurante transmite o pronunciamento de Javier Milei em 22 de abril Foto: Agustin Marcarian/Reuters

Em uma viagem do ministro da Economia, Luis Caputo, a Washington, onde participou da nova rodada de negociações da dívida do país com o FMI, o governo Milei ouviu elogios. Em um comunicado, o Departamento do Tesouro dos EUA disse que era “impressionante o progresso feito [na Argentina] para reduzir a inflação e o acúmulo de moeda estrangeira”, mas também observou a necessidade de manter os cuidados sociais, um alerta que o FMI já havia feito.

Arrocho de salários e aposentadorias

“Obviamente, do ponto de vista do governo, o fato de pela primeira vez em mais de dez anos a Argentina conseguir um superávit financeiro, é um dado muito positivo”, observa o economista Juan Manuel Telechea. “A questão é como se chegou a esse resultado. Isso se explica muito pelo ajuste do gasto público e mais da metade desse ajuste foi conquistado com a trituração dos salários e aposentadorias”.

Segundo cálculos, 45% do resultado do primeiro trimestre se explica pelo corte de salários, pensões, aposentadorias e programas sociais; outros 20% seriam a redução das obras públicas e o restante foi obtido com fim de subsídios e aumento de impostos.

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Os salários formais tiveram uma perda de 20% entre dezembro e fevereiro, apesar do ajuste acordado, que trouxe um aumento nominal de 38,5% nesses mesmos três meses, insuficiente para uma inflação de mais de 70% no mesmo período.

O mês, ainda, não reflete o “tarifaço” que foi um aumento no preço de serviços essenciais como energia, gás e combustíveis, cujos saltos foram na casa das centenas percentuais este mês, o que pressiona ainda mais o poder de compra.

Pobreza em disparada

Segundo projeções da Universidade Torcuato Di Tella, cerca de 48,3% dos argentinos estavam abaixo da linha da pobreza no período de análise que vai de outubro a março. Só no primeiro trimestre, o número de pobres seria de 22,3 milhões, um aumento de 3,2 milhões em relação ao período anterior, com praticamente 1 milhão de pessoas caindo abaixo da linha da pobreza por mês.

A projeção, liderada pelo economista Martín González Rozada, combina dados do instituto de estatísticas, com o valor atual da cesta básica, a inflação e a variação dos salários para fazer atualização das estimativas, já que os dados de pobreza oficiais têm uma defasagem de um semestre.

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“A incidência projetada é uma média ponderada de uma taxa de pobreza estimada em 44,9% para o quarto trimestre de 2023 e 51,8% para o primeiro trimestre de 2024″, explica o relatório.

A pobreza no país dava sinais de crescimento desde pelo menos setembro do ano passado, logo após a primeira grande desvalorização da moeda promovida pelo governo Alberto Fernández. Mas depois de dezembro, com a última desvalorização de 54% no valor do peso somado à política de corte dos programas sociais e congelamento de salários, o índice disparou para taxas maiores que na época da pandemia.

O dado da Universidade Torcuato Di Tella ainda é positivo frente à projeção feita pelo Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina (UCA), que em janeiro calculou mais de 57% da população abaixo da linha da pobreza e estimou números acima de 60% a partir de fevereiro. Ainda não houve atualizações para março.

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Consumo e produção despencam

Essa perda no poder de compra também trouxe como consequência uma queda no consumo. Em março, os argentinos consumiram 7,5% menos, quase duplicando a taxa de fevereiro, que havia sido de 4,1%. Os dados são da consultoria especializada Scentia, divulgados nesta terça-feira, 23, pelo jornal Clarín.

Ao todo, o primeiro trimestre acumula uma queda de 5,1%. O valor é maior do que os períodos da pandemia, cujo recorde foi uma perda de 4,5% em outubro de 2022. Os primeiros meses de Milei contrastam com os últimos meses de Alberto Fernández, que chegou a registrar taxas positivas de consumo acima dos 7% - muito explicado, porém, pela corrida para gastar uma moeda que estava em desvalorização galopante.

Só no varejo a queda foi 12,6% em março desde ano em comparação com o mesmo período do ano passado, segundo a Confederação Argentina de Médias Empresas (Came). No primeiro trimestre a diminuição é de 22,1%. A queda é puxada pelo setor de perfumaria e farmácia - em um contexto em que os argentinos estão escolhendo entre remédios e comida.

“Os dados de consumo, mas também de produção industrial, mostram uma queda importante. A recessão é muito significativa, com valores inclusive próximos da época da pandemia. E isso expõe um dos principais calcanhares de Aquiles do programa de Milei”, observa Telechea.

“Em parte, a queda na inflação se dá por esse motivo, as empresas estão acumulando estoques por não conseguir vender e isso ajuda muito a desacelerar os preços. Se a inflação está sendo controlada provocando uma recessão, isso significa que quando a economia começar a se recuperar, vai haver um freio ao processo desinflacionário”, continua.

Em conjunto com o consumo, a produção industrial caiu 19,1% nos últimos três meses em comparação com o mesmo período de 2023. “As empresas pesquisadas operaram em março com 70% de sua capacidade instalada, apresentando queda de 0,8 ponto porcentual em relação a fevereiro. Há setores com elevados níveis de estoques que se vêem divididos entre continuar a produzir para não cortar o processo e ter de despedir pessoal ou abrandar”, informa o relatório da Came publicado na segunda.

“Se não chegarmos a ter uma recuperação econômica, isso vai significar uma recessão muito profunda, com a queda no poder de compra e na venda das empresas que não é sustentável no tempo”, completa o economista.

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Dólar e o ‘cepo’

Com este cenário, a dúvida é sobre a sustentabilidade dos resultados positivos. Nestes três meses, Milei conseguiu reverter a tendência de queda da inflação argentina, registrando desaceleração nos últimos três meses. O índice, porém, continua o mais alto do mundo e promete ser pressionado pelos aumentos recentes do tarifaço.

A manutenção da desaceleração - em que o governo tem esperança de chegar a um dígito já no próximo mês - dependerá do futuro das reformas econômicas do governo, congeladas por embates políticos.

As expectativas também estão em torno de uma grande promessa de Milei ao assumir a presidência que é acabar com o “cepo”, ou seja, a barreira para a compra de dólares criada no governo de Cristina Kirchner. Com o fim do bloqueio, espera-se a unificação do dólar, que hoje tem vários tipos de câmbio.

“Acho que ainda não estão dadas as condições, e parece-me que o governo tem isso claro, porque há alguns meses falávamos de retirá-lo o quanto antes, inclusive em abril ou maio, mas já mudou o discurso e já se fala no segundo semestre ou até o ano que vem”, observa Telechea.

Isso porque, apesar de o Banco Central ter voltado a acumular reserva - outro fato comemorado pelo governo Milei - quando for tirada a barreira de controle, não haverá dólar suficiente para atender à corrida pela moeda.

Sem retirar o cepo, sobra a incerteza do futuro dos vários câmbios do país, em especial o paralelo chamado de “blue”. Economistas não descartam a necessidade de uma nova desvalorização da moeda, já que o valor do dólar não tem acompanhado o ritmo da inflação.

“A possibilidade de ocorrer uma desvalorização da taxa de câmbio está sempre presente. O que acontece é que atualmente o mercado não está se preocupando muito com isso”, explica Telechea.

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“Quando se observa as expectativas de desvalorização, basicamente o que se pode fazer é olhar para os preços do dólar futuro, que são estabelecidos no mercado e estão alinhados com o que o governo propõe, pelo menos para os próximos meses. Claro que isso não elimina a possibilidade de que, se o Banco Central começar a perder reservas ou se houver alguma turbulência política por algum motivo, essas expectativas possam mudar rapidamente e isso possa gerar pressão e resultar em uma desvalorização da taxa de câmbio.”

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