Como Israel se prepara para uma guerra aberta contra o Hezbollah

Vilarejos no norte do país contam com reservistas para defender kibutz e hospitais estão preparados para funcionar embaixo da terra

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Foto do author Luiz Raatz
Por Luiz Raatz
Atualização:

Esta reportagem é a segunda de uma série produzida pelo Estadão em Israel sobre os seis meses dos atentados de 7 de outubro e o impacto da guerra no país. Para ler o primeiro capítulo, clique neste link

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KFAR BLUM, ISRAEL - Íngrimes, verdes e geladas, as montanhas da Galileia enganam. Parecem um cenário idílico e pacífico à primeira vista. Na fronteira entre Israel e o Líbano, no entanto, apenas duas horas separam a tranquilidade cotidiana de um ataque de foguetes da milícia radical xiita Hezbollah.

O Estadão visitou em março Kfar Blum, um kibutz a pouco mais de 6 km da fronteira com o Líbano, onde conversou com moradores sobre o cotidiano de tensão na região. Duras horas depois da nossa partida, militantes do Hezbollah dispararam contra o local. Os projéteis foram interceptados pela defesa aérea israelense.

Em Kfar Blum, a reportagem foi recebida pela guarda comunitária do local, composta por Yiftach Dahadi, um chef de cozinha que morava na Alemanha e voltou para Israel por causa da guerra contra o Hamas, Udi Avni, um especialista em equipamentos de segurança que trabalhava como consultor em Monterrey, no norte do México, e Amir, um biólogo especialista em células-tronco. Todos são reservistas do Exército e têm mais de 40 anos.

Permissão para atirar contra o Hezbollah

Eles andam armados com fuzis de grosso calibre e fardados dentro do kibutz. Sua missão é, em caso de um possível ataque, estar na primeira linha de defesa contra o Hezbollah até que o Exército chegue. No total, o grupo tem 30 pessoas.O grupo atua em coordenação com o Exército israelense e tem permissão para atirar caso identifiquem alguma ameaça.

Nenhum dos três tira a arma dos ombros durante a conversa. Kfar Blum não foi isolado, como outros vilarejos da fronteira, mas está na mira dos foguetes e disparos de artilharia que, desde o ataque do Hamas em sete de outubro, atingem a região da fronteira. Na Alta Galileia como um todo, mais de 60 mil pessoas tiveram de deixar suas casas.

” A guerra aqui no norte ainda é um confronto de baixa escala, mas se tornará um confronto de larga escala caso aconteça de verdade”, avalia Avni. “Mas uma vez que vi que o Hamas tinha colocado bebês em microondas, larguei tudo no México e voltei, porque sabia que aqui seria o próximo alvo.”

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Soldados da reserva do Exército de Israel fazem a proteção do kibutz Kfar Blum, na fronteira com o Líbano Foto: Luiz Raatz/Estadão

Uma ideia ‘roubada’ do Hezbollah

O ataque do Hamas também mobilizou imediatamente Sarit Zehavi, diretora do Alma Center, um think tank que estuda o conflito com o Líbano. Quando as primeiras notícias sobre os atentados foram divulgadas e a dimensão do que estava acontecendo foi ficando mais clara,, teve uma epifania:

“É a Operação Galileia!”, disse a pesquisadora, que já trabalhou como analista de inteligência para o governo de Israel. "

Ela se referia a um vídeo de propaganda difundido pelo Hezbollah em 2012, que narrava uma invasão do norte de Israel por militantes do grupo via terra, mar e ar, acompanhados de uma chuva de mísseis e foguetes.

Muitos analistas dizem que houve algum grau de cooperação e treinamento entre o Hamas, o Hezbollah e a Guarda Revolucionária do Irã na preparação para o 7 de outubro. Esse vídeo é um indício. Há outros, como o treinamento de unidades de elite do Hamas no Líbano com agentes iranianos. O Hezbollah, no entanto, assim como o Irã, tem evitado uma conflagração direta com Israel.

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Em meio à crescente tensão, Zehavi diz que um confronto aberto com o Hezbollah é uma questão de tempo. Segundo ela, cada vez mais o grupo xiita infiltra seus homens na fronteira, contrariando a resolução da ONU que criou uma zona tampão no sul do Líbano em 2006, na última vez em que houve uma guerra aberta na região.

“É só ouvir as palavras deles e cruzar com suas capacidades militares, que estão cada vez maiores desde o fim da guerra de 2006″, alerta Zehavi, que é coronel da reserva do Exército, onde trabalhou com contrainteligência.

Um arsenal de drones e mísseis

Essas capacidades, segundo analistas de inteligências de dentro e fora de Israel estão cada vez maiores. Segundo o Brookings Institution, o Hezbollah é a força não estatal com maior poder militar do mundo. Tem ao menos 70 mil mísseis e foguetes, a maioria de curto alcance. A maior parte desse arsenal, no entanto, não tem precisão de alvo. Apenas 100 mísseis conseguem atingir com maior probabilidade o alvo desejado. Os mísseis vêm do Irã, da Síria e de velhos Scud soviéticos provavelmente contrabandeados do Iraque após a queda de Saddam Hussein.

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O Hezbollah conta ainda com um arsenal de cerca de 2 mil drones, a maior parte deles de fabricação caseira. O alcance desses drones varia de distâncias bem curtas, de até 100 km, às maiores, de até 1,7 mil km, e podem trazer cargas explosivas contra alvos civis e militares em Israel.

O grupo ainda tem uma força de infantaria de 100 mil homens, e o apoio logísitico e militar da Síria e do Irã. O ponto militar mais fraco da milícia, no entanto, reside na sua falta de poder aéreo e antiaéreo e de veículos blindados, o que a torna um alvo fácil para o poderoso Exército israelense.

Funeral em Beirute de Ahmed Shehimi,líder do Hezbollah morto em bombardeio israelense na Síria no dia 29  Foto: IBRAHIM AMRO / AFP

Os alvos do Hezbollah em Israel

O problema, segundo analistas, é que as características geográficas e econômicas da região também evidenciam as fragilidades de Israel perante um ataque. De acordo com o Bureau de estatísticas de Israel, 53% da população vive na faixa central de terra entre Tel Aviv e Jerusalém, na planície central do país. A região abriga também grande parte da força produtiva do país.

Espremido entre as colinas da Cisjordânia a leste, o mar a oeste, a cordilheira da Galileia a norte, e o Deserto do Negev ao sul, num país de apenas 22 mil km2 o centro de israel é frágil do ponto de vista estratégico.

Segundo Uri Yaakov, pesquisador sênior do Instituto Internacional de Contraterrorismo da Universidade de Reichman, em Herzliya, um ataque do Hezbollah envolveria uma chuva de mísseis contra o norte e o centro de Israel e ataques contra alvos estratégicos. “A população ficaria em abrigos não por horas, mas por dias, e a retaliação seria muito muito pesada. Haveria milhares de mortes de lado a lado”, diz.

Os alvos estratégicos a que ele se referem envolvem o fornecimento de água e energia. Israel depende de usinas de dessalinização e de refino de combustível, e a maioria delas está na costa do país. As grandes cidades também concentram os maiores serviços de saúde e grandes hospitais, que também seriam potenciais alvos do Hezbollah.

Subsolo do hospital Rambam, adaptado para uma guerra contra o Hezbollah e o Hamas Foto: Luiz Raatz/Estadão

Um hospital preparado para a guerra

É o caso de Haifa, a maior cidade no norte de Israel, onde o Hospital Rambam tem tudo preparado para o caso de uma guerra aberta contra o Hezbollah. Referência em atendimento de excelência na região, o hospital pode rapidamente transformar o seu estacionamento em uma unidade médica completa, com leitos, UTIs e até cirurgia de emergência, caso mísseis e foguetes da milícia libanesa atinjam a cidade.

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A reportagem visitou as instalações hospitalares subterrâneas, mantidas em prontidão desde o ataque do 7 de outubro. As cores dos setores do estacionamento que facilitam ao motorista encontrar o carro se transformam, no hospital subterrâneo, em referências para o tipo de tratamento. Verde é UTI. Rosa é a área de medicação. Azul é a de cirurgia, e amarelo, os leitos comuns. No total, são 2 mil leitos.

O local conta também com um sistema de refrigeração e purificação de ar muito engenhoso, com uma espécie de dutos adaptados e pode resistir a ataques químicos ou biológicos.

Os leitos funcionam nas vagas do estacionamento Foto: Luiz Raatz/Estadão

Tensão cada vez maior

Até o momento, Israel, tem apostado em ataques cirúrgicos para enfraquecer tanto o Hamas, quanto o Hezbollah e o Irã. Em janeiro, um ataque aéreo israelense matou Saleh al-Arouri, o número dois do Hamas em Beirute. Também no começo do ano, um importante líder militar do Hezbollah, Saleh al-Arouri, foi morto num ataque de Israel. E na quinta-feira, um ataque ao consulado iraniano nos arredores de Damasco, na Síria, matou sete membros da Guarda Revolucionária do Irã.

Uma fonte da chancelaria israelense com acesso a dados de inteligência, que não pode se identificar por não poder discutir abertamente estratégia militares, disse ao Estadão que a avaliação de momento é que o Hezbollah não quer um confronto aberto com Israel. “Ninguém quer uma guerra em larga escala. Mas o problema é que eles estão fazendo apostas cada vez mais arriscadas”, disse.

Desde outubro, mais de 4,4 mil ataques com foguetes ou mísseis vindos do Líbano foram disparados contra Israel, segundo o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, um think tank americano. Ao menos 17 israelenses morreram, sendo 3 civis e 14 militares, segundo o Exército. Do lado libanês, 257 homens do Hezbollah morreram, de acordo com o grupo.

“Reduzir as tensões serve ao bem comum. Estamos apelando a China, Índia e Rússia para que o Irã pare de apoiar o Hezbollah. Mas um problema adjacente é que o Irã tem um controle limitado sobre seus agentes na região, como o Hezbollah, os houthis e o Hamas”, acrecentou a fonte da chancelaria. “Mas estamos à beira do esgotamento das vias diplomáticas.”

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