Há uma séria crise internacional se formando na costa norte da América do Sul. Em um esforço para desviar a atenção de sua longa lista de fracassos e hábitos contínuos de repressão política, o presidente venezuelano Nicolás Maduro está provocando seu pequeno vizinho, a Guiana.
Embora a crise de Essequibo devesse ser pouco mais que uma tempestade em um copo d’água que se resolveria por conta própria, existe um risco real de que ela possa explodir e destruir a credibilidade regional e internacional do Brasil, se Lula não a controlar.
A fronteira internacional na região de Essequibo foi estabelecida por um tribunal de arbitragem internacional em 1899, onde, a pedido de Caracas, os EUA representaram a Venezuela nas negociações com a Grã-Bretanha, que ocupava a colônia da Guiana na época.
Por 63 anos, a Venezuela aceitou a fronteira, até que a Grã-Bretanha começou o processo de retirada colonial, resultando no reconhecimento internacional da Guiana como um país em 1966. Em 2018, a Guiana cansou das tentativas frustradas de negociar com a Venezuela e levou a questão ao Tribunal Internacional de Justiça, pedindo que confirmasse a fronteira de 1899; a Venezuela rejeita a competência do TIJ para decidir sobre o assunto.
Nada disso era particularmente importante até que dois fatores intervieram. Primeiro foi a descoberta de enormes campos de petróleo offshore na região de Essequibo, na Guiana. Segundo, foi o deslizamento completo de Maduro para a repressão política autoritária em 2023, juntamente com a necessidade de desviar a atenção do estado cada vez pior da economia venezuelana e proporcionar novas oportunidades de corrupção para as principais bases de apoio, principalmente as Forças Armadas.
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O resultado foi um referendo apressado na Venezuela sobre a anexação de dois terços do território da Guiana; é revelador que não houve qualquer pretensão de consultar os guianenses que vivem na área.
Embora o regime de Maduro tenha alegado uma participação maciça e 95% de aprovação para a anexação e rejeição da autoridade do TIJ, atores dissidentes apontam para o oposto e para o desinteresse generalizado na questão. Maduro agora está mobilizando suas Forças Armadas na fronteira com a Guiana e construindo a infraestrutura necessária para tornar sua anexação retórica uma realidade física.
Por que isso importa para o Brasil e, em particular, para Lula?
Assim como foi o caso em 1995, quando o recém-inaugurado Fernando Henrique Cardoso foi confrontado com uma guerra entre Equador e Peru, a liderança brasileira na região e a credibilidade global dependem da capacidade de manter seu próprio quintal em ordem. Afinal, por que alguém ouviria o Brasil, se ele não consegue evitar uma guerra entre dois de seus vizinhos?
O problema é que a crise de Essequibo é consideravelmente mais complicada do que a disputa entre Equador e Peru. Naquele conflito dos anos 1990, ninguém realmente queria se envolver em hostilidades, e uma eleição no Equador trouxe um novo presidente ao cargo, profundamente comprometido com a paz. Não apenas esse cenário não se repetirá na Venezuela, como a crise de Esequibo também envolve fatores geopolíticos muito maiores.
Especial: a disputa entre Venezuela e Guiana pelo Essequibo
Simplificando, o Canadá tem mais chances de ganhar a Copa do Mundo de 2026 do que a oposição de ganhar a presidência na Venezuela em julho deste ano. Pior, mesmo que Maduro estivesse inclinado a aliviar as tensões, ele está criando um fervor nacionalista tão grande que isso pode não ser possível. Complicando ainda mais a situação estão os pesados investimentos em novas instalações e treinamento pelas Forças Armadas ao longo da fronteira com a Guiana. Isso está encorajando ainda mais os militares, a ponto de poderem exigir ou simplesmente tomar licença para atacar, independentemente dos comandos presidenciais ou das consequências para a já frágil posição internacional da Venezuela.
Em teoria, a maior restrição a uma potencial invasão venezuelana da Guiana é o risco de isolamento internacional. No entanto, isso assume que é o engajamento com o Ocidente e o resto da América do Sul que importa para a Venezuela. Tais restrições são mitigadas pelos estreitos laços do regime de Maduro com Putin e sua comitiva, bem como fortes vínculos econômicos com a China. Ambos esses relacionamentos bilaterais desempenharam um papel crítico em sustentar a Venezuela durante a espiral do regime chavista em direção ao autoritarismo sob Maduro. Não há muita razão para pensar que a anexação física de Essequibo levaria Moscou ou Pequim a reavaliar as relações com Caracas.
Uma invasão da Guiana baseada na lógica jurídica decididamente frágil que Maduro construiu seria um presente legitimador para Putin e suas próprias aspirações regionais. Além disso, criaria mais um ponto de tensão global que poderia desviar parte da atenção e apoio dos EUA da guerra na Ucrânia. Como está, já existe um grau significativo de cooperação militar entre a Venezuela e a Rússia, incluindo uma transferência substancial de armamentos para o país sul-americano.
Enquanto a Rússia poderia expressar uma aprovação vocal a uma invasão venezuelana, a reação chinesa provavelmente seria mais circunspecta. Como a Venezuela, a China está contestando várias demarcações de fronteiras internacionais e acolheria a pressão aumentada para questionar decisões fronteiriças históricas.
A China também está insatisfeita com a estrutura do sistema jurídico internacional, o que torna a rejeição sumária da Venezuela à jurisdição do TIJ na disputa de Essequibo um ataque bem-vindo a uma parte chave da Ordem Liberal Internacional. Some-se a isso os preços favoráveis que a China está pagando pelo petróleo venezuelano, bem como o investimento nesse setor, e a reação mais condenatória que podemos esperar de Pequim a uma invasão da Guiana é um silêncio estudado. Nos bastidores de Pequim, podemos esperar deleite com a disrupção que uma guerra causaria aos EUA.
O Secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, deu sinais claros de que seu país espera que o Brasil desempenhe um papel importante para prevenir que essa crise saia de controle, e confia que o Brasil faça seu trabalho. Em uma nota positiva, isso aponta para um alto respeito mútuo e uma coordenação silenciosa nas relações bilaterais EUA-Brasil, mas também traz um risco significativo.
As relações positivas continuadas, incluindo uma disposição de Washington para ignorar os floreios retóricos de Lula e às vezes decisões políticas inconvenientes, dependem da capacidade do Brasil de fornecer a liderança regional concreta de manter a paz e a estabilidade na América do Sul.
Isso deixa Lula com duas tarefas na região. Primeiro, ele precisa persuadir Maduro a moderar sua retórica e garantir que o líder venezuelano crie uma saída para si mesmo do caminho de guerra. Simultaneamente, as Forças Armadas do Brasil precisam se envolver fortemente com suas contrapartes venezuelanas e impressioná-las com o resultado calamitoso de seguir em frente com uma invasão, uma tarefa que pode, em última análise, exigir que o Brasil se envolva em extensos exercícios de “treinamento” com as forças de segurança guianenses na região de Essequibo.
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Nenhuma dessas tarefas será alcançável se Lula não conseguir que seus homólogos em Pequim e Moscou pelo menos desaprovem em privado a intenção de Maduro.
Lula tem proclamado a linha “O Brasil está de volta” e reivindicado um papel de liderança regional e internacional para si mesmo como um estadista global. Nenhuma dessas reivindicações é exagerada ou irracional, mas elas exigem que Lula faça o trabalho duro e gaste o capital político para gerenciar e desescalar o conflito ao norte. Embora Lula tenha feito um bom trabalho até agora, a tarefa está longe de terminar e só ficará mais difícil. Infelizmente para Lula, o sucesso provavelmente não trará crédito, mas o fracasso marginalizará o Brasil e o excluirá das principais salas de decisão globais.