Os riscos da ascensão da esquerda na América Latina

‘Estadão’ publica série de reportagens que mostra como o crescimento da esquerda pode abalar a democracia, atrasar o desenvolvimento e comprometer o futuro da região

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Por José Fucs
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11 min de leitura

Quando tomar posse como presidente da Colômbia no domingo, 7, Gustavo Petro, de 62 anos, um ex-integrante do grupo guerrilheiro M-19, estará escrevendo um capítulo inédito na história do país, ao se tornar o primeiro político de esquerda a ocupar a Casa de Nariño, sede do governo colombiano.

Com sua eleição, em junho, Petro, que iniciou sua carreira política na década de 1970, enquanto participava clandestinamente da luta armada, engrossou a chamada “maré rosa” – uma expressão criada pela própria esquerda para “romantizar” a ascensão em série de seus líderes na América Latina nos últimos anos.

Em outubro, se o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva confirmar as previsões das pesquisas e vencer as eleições no Brasil, o grupo ganhará o reforço de um esquerdista da velha guarda, que ainda é visto como um “guia” pelas esquerdas latino-americanas, apesar dos processos por corrupção que enfrenta na Justiça.

Se Lula realmente voltar ao Palácio do Planalto, a esquerda controlará 13 dos vinte países da região, incluindo as seis maiores economias, estendendo os seus tentáculos de Tijuana, no México, à Terra do Fogo, no Chile e na Argentina (veja os mapas abaixo).

Com o objetivo de contribuir para a compreensão do fenômeno, o Estadão lança uma série de reportagens especiais sobre o crescimento da esquerda na América Latina. Iniciada com esta reportagem, que aborda as razões que estão levando seus líderes à vitória e os riscos que isso poderá representar para o futuro, a série vai dar um mergulho em três casos que ilustram de forma emblemática as experiências desastrosas da esquerda latino-americana no governo.

O primeiro será o da Argentina, onde o presidente Alberto Fernández, cuja popularidade está em queda livre, enfrenta um quadro econômico catastrófico e dificilmente conseguirá fazer o seu sucessor, nas eleições de 2023.

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Depois, virá o caso do Chile, onde o presidente Gabriel Boric, que está há apenas cinco meses no cargo e se apresentou nas eleições como uma voz moderada da esquerda, tornou-se um dos mandatários mais impopulares da região, segundo as pesquisas, com apenas 35% de aprovação.

Por último, será a vez da Nicarágua, que se transformou numa ditadura de esquerda à la Cuba e Venezuela, sob o comando do ex-líder sandinista Daniel Ortega, responsável pela instalação de um regime de terror no país, com a perseguição e a prisão indiscriminada de líderes da oposição.

Além das reportagens especiais, o Estadão deverá publicar uma série de entrevistas exclusivas com analistas, escritores e acadêmicos, do País e do exterior, que acompanham com lupa os acontecimentos políticos, econômicos e sociais da América Latina.

Os governos de esquerda fizeram da Venezuela um Haiti, da Argentina uma Venezuela e, se bobear, farão do Chile uma Argentina

Eufóricos com a conquista e a reconquista de novas e velhas trincheiras, políticos, intelectuais e militantes da esquerda espalhados pela América Latina e pelo mundo apressaram-se em atribuir a ascensão do grupo a um suposto apoio às suas bandeiras e à rejeição das políticas pró-mercado implementadas pelos líderes de direita e centro-direita que estavam no poder em vários países da região, como Colômbia, Chile, Peru, Bolívia e Honduras.

Em meio à excitação da turma, proliferaram por aí velhos clichês anticapitalistas, calcados na ideia – cultivada desde os tempos do comunismo e agora repaginada – de que a esquerda é a “legítima” representante dos “descamisados” e de que ela – e só ela – é capaz de levar à prosperidade geral e à melhoria da qualidade de vida dos cidadãos – uma crença jamais comprovada pelas experiências do chamado “socialismo real”. “Há uma clara demonstração de insatisfação com a agenda neoliberal”, diz um dos chavões mais repetidos pelo grupo. “Isso é o reflexo do inconformismo com o aumento da fome e da desigualdade”, afirma outro.

Mas, na verdade, embora a América Latina tenha graves problemas estruturais, como a pobreza que atinge boa parte da população, a falta de serviços públicos de qualidade e a corrupção generalizada, que se perpetuam independentemente de quem está no poder, a ascensão da esquerda teve pouco ou nada a ver, de acordo com os analistas ouvidos pelo Estadão, com uma guinada ideológica dos eleitores.

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“As pessoas falam de uma ‘maré rosa’, mas eu acredito que o que está acontecendo é uma maré contra os incumbentes. Elas estão votando contra os governos anteriores, independentemente de serem de direita ou de esquerda”, afirma o cientista político Nicolás Saldías, analista para a América Latina e o Caribe da Economist Intelligence Unit (EIU), ligada ao grupo que publica a revista britânica The Economist.

“Isso é um movimento de revolta contra o status quo. Não é uma predisposição do eleitorado em favor de plataformas de esquerda”, diz o também cientista político Christopher Garman, diretor-executivo para as Américas da Eurasia, uma consultoria internacional especializada em avaliação de riscos. “A esquerda está ganhando as eleições agora, porque mais governos de direita ou de centro estavam no poder na América Latina.”

Torre de David, em Caracas, na Venezuela, maior favela vertical do mundo: socialização da miséria  Foto: JORGE SILVA / REUTERS

De acordo com Garman, a região está dominada por um profundo sentimento de desencanto, com baixíssimos índices de confiança em relação ao sistema – aí incluídos os partidos, as lideranças políticas e o Judiciário. Apesar de isso ser uma tendência mundial, ele afirma que a América Latina aparece no topo dos rankings globais de desencanto com o sistema. “A geologia da opinião pública está podre. É esse caldeirão de revolta que está elegendo a esquerda.”

O processo de deterioração começou em meados da década passada, com o fim do ciclo de alta dos preços das commodities, que beneficiou tremendamente a primeira onda de governos de esquerda na região, a partir dos anos 2000.

A economia dos países latino-americanos, altamente dependentes da exportação de commodities, perdeu força. A classe média emergente deu marcha à ré na escala social. Milhões de pessoas voltaram para a pobreza. A insatisfação cresceu de forma considerável.

Houve manifestações contra a baixa qualidade dos serviços públicos, como as que ocorreram no Brasil, em 2013, que depois acabaram levando ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016. Sua queda colocou um ponto final nos quase 14 anos de governo do PT, em meio a escândalos bilionários de corrupção, e abriu espaço para o seu vice Michel Temer assumir o posto e para a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018.

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Um pouco antes ou um pouco depois, conforme o caso, outros líderes de esquerda que estavam no poder na América Latina – na Argentina, no Chile, no Uruguai, no Equador, na Bolívia – também perderam seus cargos para opositores de direita e de centro-direita.

Frustração

De repente, parecia que a onda da esquerda latino-americana tinha ficado para trás. No entanto, como os preços das commodities continuaram baixos por um bom tempo, a situação anterior não se alterou significativamente. Pior: foi agravada pela pandemia, que atingiu justamente a baixa classe média e os mais vulneráveis, reforçando a insatisfação já existente contra o sistema. Resultado: a direita está sofrendo hoje os efeitos do mesmo quadro econômico tóxico que contribuiu para a derrota da esquerda na região alguns anos atrás.

“Esses governos de direita e centro-direita podem ter sido beneficiados pelo fim do primeiro boom de commodities, substituindo governos de esquerda. Mas, como o fim desse ciclo teve um efeito prolongado, eles também foram vítimas do sentimento de frustração e se tornaram extremamente impopulares”, diz o escritor Alvaro Vargas Llosa (filho do Prêmio Nobel de Literatura de 2010, Mario Vargas Llosa), coautor dos livros Manual do Perfeito Idiota Latino-americano, publicado em 1996, e A volta do idiota, lançado em 2005, nos quais ele fala com ironia sobre a atuação e a mentalidade das esquerdas na região.

Mesmo que os preços das commodities tenham voltado a disparar após o surgimento do coronavírus, no fim de 2019, o cenário econômico ficou bem mais complicado do que no início dos anos 2000. A inflação, puxada pelo desarranjo causado nas cadeias de produção pela pandemia e, mais recentemente, pela guerra na Ucrânia, deu um salto em todo o mundo. A economia global desacelerou. Países desenvolvidos, como os Estados Unidos, estão no limiar de uma recessão. Os juros, que registraram recordes de baixa no boom das commodities, agora estão subindo na maioria dos países, para domar a elevação dos preços. “A sensação de bem-estar econômico não está acompanhando este ciclo de alta de preços das commodities. Então, os ganhos políticos não são os mesmos”, afirma Garman.

Além de tudo disso, a esquerda agora ainda está se beneficiando, em alguns países, da reação dos eleitores de centro contra os candidatos da direita radical, como aconteceu no Chile, com José Antonio Kast, e como poderá acontecer no Brasil, de acordo com as pesquisas, com o presidente Jair Bolsonaro, que disputa a reeleição.

“Os eleitores de centro estão com medo de ser identificados com os líderes e as forças populistas de extrema direita”, diz Vargas Llosa. “Eles acham que vão pagar um preço mais alto se forem identificados com populistas de direita do que com populistas de esquerda.”

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Lula, com Ortega, da Nicarágua: ex-presidente sempre foi complacente com ditaduras latino-americanas Foto: REUTERS/Carlos Barria

O problema, independentemente das razões que estejam levando as esquerdas ao poder na América Latina, são os riscos, muitas vezes negligenciados, que isso envolve. Na primeira onda de governos do grupo na região, que incluía, além de Lula e Dilma, os ex-presidentes Hugo Chávez (1954-2013), da Venezuela, Néstor e Cristina Kirchner, da Argentina, Michelle Bachelet, do Chile, José Mujica, do Uruguai, Fernando Lugo, do Paraguai, Rafael Correa, do Equador, e Evo Morales, da Bolívia, o estrago foi grande.

Os governos de esquerda fizeram da Venezuela um Haiti, da Argentina uma Venezuela e, se bobear, farão do Chile uma Argentina. Em nome do combate à desigualdade, eles acabaram por socializar a pobreza, ainda que, durante o percurso, tenham conseguido dar alguma sensação de melhora, com gastos sem lastro de recursos públicos e o uso de anabolizantes para turbinar a economia.

Hoje, muitos analistas têm procurado realçar as diferenças existentes entre os próprios líderes da nova onda de esquerda e entre eles e os integrantes da primeira onda. Ok. Mas, ainda que elas existam mesmo nos dois casos, a receita para a economia costuma ser sempre a mesma, temperada por um discurso nacionalista e anti-imperialista. A medida pode até variar. Os ingredientes não se alteram: irresponsabilidade fiscal, aumento de tributos, intervencionismo do Estado, expansão de estatais, protecionismo, regulação excessiva, “demonização” do lucro e da livre iniciativa, favorecimento de sindicatos e concessão indiscriminada de subsídios e de benefícios.

“Se, em vez de implementar uma política para melhorar o ambiente de negócios, o governo aumentar impostos e dificultar investimentos, você terá baixo crescimento e uma população desapontada, porque ele não conseguirá entregar o que prometeu, como aumento da renda e expansão massiva dos serviços sociais”, afirma Nicolás Saldías, da EIU.

Tragédia

Na área externa, apesar de Boric, do Chile, estar se mostrando um crítico da política de direitos humanos de Cuba, da Venezuela e da Nicarágua, ele é praticamente uma voz isolada neste campo. Os presidentes do México, Andrés Manuel López Obrador, da Argentina, Alberto Fernández, da Bolívia, Luis Arce, e de Honduras, Xiomara Castro, entre outros mandatários latino-americanos, continuam a “passar pano” para as três ditaduras regionais. Arce e Obrador, considerado por Vargas Llosa como o principal líder da nova “maré rosa”, nem foram à Cúpula das Américas, organizada pelo presidente americano Joe Biden, em protesto pela exclusão de Cuba, da Venezuela e da Nicarágua do encontro.

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Mesmo Petro, da Colômbia, que durante a campanha eleitoral procurou se distanciar do atual presidente venezuelano, Nicolás Maduro, ainda que fosse um admirador declarado de Chávez, anunciou antes mesmo da posse a reabertura das fronteiras com a Venezuela, cujo governo não era reconhecido na gestão de Iván Duque, de centro-direita, que o antecedeu no posto.

Lula, por sua vez, mantém a mesma posição complacente que sempre teve nesta questão, como mostrou mais uma vez no fim do ano passado, ao comparar Ortega, da Nicarágua, com a ex-chanceler da Alemanha Angela Merkel e o ex-presidente da Espanha Felipe González. “Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e o Daniel Ortega não? Por que o Felipe González pode ficar 14 anos no poder? Qual a lógica?”, afirmou, “esquecendo-se” de que ambos foram eleitos democraticamente, enquanto Ortega garantiu o seu quarto mandato como presidente em um pleito manchado por suspeitas de fraude e realizado depois que ele mandou prender seus principais concorrentes.

“O Lula foi um dos principais instigadores da tragédia sofrida pela América Latina pelas mãos de demagogos de extrema esquerda, ainda que ele não fosse um deles. Embora também fosse um demagogo, não era um demagogo de extrema esquerda, mas deu seu apoio a todas as causas antidemocráticas na região durante todo o período em que esteve no governo”, diz Vargas Llosa. “Ele foi uma força importante atrás do Chávez e um dos grandes aliados de Cuba e do Evo Morales.”

Discurso belicoso

Do ponto de vista político e institucional, já estão ocorrendo algumas tentativas de aumento de poder e de restrições às liberdades por parte de líderes de esquerda latino-americanos, trazendo à tona o fantasma de Chávez, que mudou as regras eleitorais e “aparelhou” o Judiciário para se perpetuar na Presidência.

Obrador, do México, por exemplo, tornou-se um crítico público de veículos de comunicação e de jornalistas, a quem chamou recentemente de “conservadores”. O discurso belicoso contra a imprensa levou a um aumento recorde dos assassinatos de jornalistas, que já chegam a 31 desde o início de seu governo. Também há iniciativas, por meio de seus correligionários, para restringir a privacidade e a liberdade de expressão no meio digital.

Como se vê, quando a esquerda chega ao poder na América Latina, os riscos de a coisa descambar, gerando retrocessos para a democracia e condenando os países da região ao atraso, não podem ser desprezados. No ano que vem, com a realização de eleições presidenciais na Argentina, nas quais as chances de vitória de Fernández são pequenas, conforme as pesquisas, o país terá a oportunidade de superar o caos econômico e político em que se encontra.

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Se a derrota do peronista Fernández se confirmar, a Argentina será o primeiro país a deixar o grupo de líderes que compõem a nova onda de esquerda latino-americana. Antes disso, porém, nas eleições de outubro, é o Brasil que terá de definir o seu futuro, levando em conta os resultados trágicos deixados pela esquerda na América Latina.