Quem é Renaud Camus, e o que diz sua polêmica teoria racista da ‘grande substituição’

Autor gay foi de escritor militante da esquerda cultural da França na década de 60 a teórico usado pelos supremacistas brancos

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Por Redação
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Renaud Camus mora em um castelo fortificado no topo de uma colina em Plieux, região da Gasconha, sudoeste da França, com vista para o campo, bosques e casas rurais. Seis anos atrás, ele reconstruiu uma torre do século XIV e recuperou o propósito original de fortaleza, ganhando uma visão ainda mais imponente dos arredores. A posição da torre, descrevem reportagens da revista New Yorker e do jornal The New York Times, foi pensada originalmente para observar de longe a chegada de hordas invasoras.

É neste lugar que Camus -- sem parentesco com o filósofo Albert Camus -- escreveu as ideias que motivaram ataques supremacistas brancos realizados nos últimos anos, incluindo o massacre que matou 10 negros em Buffalo, nos Estados Unidos, no sábado, 14. Ele é o autor do livro Le Grand Remplacement (A grande substituição), publicado em 2012. O livro desenha uma Europa invadida por imigrantes “empenhados” em conquistar e destruir a população branca do continente.

A ideia da grande substituição sugere que negros, árabes e pardos irão extinguir a cultura branca europeia. “Você tem um povo e, no espaço de uma geração, você tem um povo diferente”, descreveu Renaud Camus à New Yorker em um perfil publicado pela revista em 2017.

Escritor francês Renaud Camus, que se tornou conhecido pela tese da 'grande substituição' em 9 de dezembro de 2021. Tese é utilizada por supremacistas brancos Foto: Joel Saget/AFP

Embora o livro nunca tenha sido traduzido para o inglês, a tese se espalhou rapidamente entre a extrema direita supremacista. Outros autores possuem ideias semelhantes, mas elas passaram a se popularizar só depois do termo ‘a grande substituição’ surgir. “O slogan dramatiza a situação, falando de grande substituição da mesma forma que falamos das grandes invasões bárbaras”, disse ao New York Times a especialista em extremismo político Rudy Reichstadt, do instituto de pesquisa Fondation Jean-Jaurès, em Paris.

Em entrevistas, Camus condena os episódios de violência motivados pela tese da grande substituição, mas paradoxalmente parece se orgulhar que ela tenha se espalhado para outros países. “A grande substituição se tornou um termo familiar”, disse ele ao NYT em 2019. “Assumo a responsabilidade por isso. Acredito na sua relevância.”

O fato do escritor francês ter se tornado influente entre a extrema direita também é paradoxal com o seu passado. Renaud Camus, hoje com 75 anos, surgiu na década de 60 como um artista de esquerda, ligado ao círculo cultural da França que participou dos protestos de Maio de 1968.

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Assumidamente gay, seu único livro traduzido para o inglês, “Tricks” (1979), é descrito como “uma odisseia sexual - de homem para homem” e narra experiências sexuais autobiográficas, com um prefácio do escritor francês Roland Barthes, um dos pensadores mais influentes da segunda metade do século 20. Para o poeta americano Allen Ginsberg, ícone da geração beat, “Tricks” apresenta um mundo “de um novo homossexual urbano; à vontade em meia dúzia de países”.

‘Momento da pílula vermelha’

Renaud Camus nasceu em 1946 na cidade rural de Chamalières, na região francesa de Auvernia, centro do país. Em 1960, foi para Paris, onde se formou em Direito e Literatura e fez mestrado em Filosofia, na área de Estética. Foi nesta época que fez amizade com Roland Barthes e se tornou membro do Partido Socialista. Em 1981, votou em François Mitterrand, defensor da ampliação dos direitos dos imigrantes, para a presidência da França.

Camus alterou radicalmente a sua posição política no final dos anos 1990. Ao viajar pelo interior da França e visitar aldeias medievais para escrever livros sobre viagens domésticas, incentivado pelo governo, o escritor se deparou com uma realidade que o fez ter uma espécie de epifania - ou, como ele descreveu à New Yorker, o “momento da pílula vermelha”, uma referência ao filme Matrix utilizada pela extrema direita para se referir a uma decisão que gera a sensação de esclarecimento. Embora conhecesse os subúrbios de Paris, com uma comunidade numerosa de negros e árabes na França, Camus se assustou ao ver cada vez mais imigrantes em lugares afastados e medievais.

Em uma destas viagens, ele se deparou com um grupo de mulheres negras utilizando véu próximo a uma fonte. “E nas janelas antigas – lindas janelas góticas uma ao lado da outra – mulheres com véus apareciam de repente”, disse ele ao NYT. “Era realmente a população da eterna França que estava mudando.”

A partir daí, o escritor passa a temer que a população da França fosse substituída por imigrantes e começa uma cruzada contra eles. Isso levou à criação de um partido próprio em 2002, o l’In-nocence, que pede o fim de toda imigração e promove o envio de imigrantes e seus parentes de volta aos países de origem. Ele chegou a se candidatar ao Parlamento Europeu, mas retirou a candidatura poucos dias antes da votação quando um dos candidatos de sua lista apareceu ajoelhado diante de uma suástica.

Atualmente, Camus apoia a ultranacionalista Marine Le Pen e é critico do presidente Emmanuel Macron, que na sua visão olha para os imigrantes como ‘unidades intercambiáveis’. No entanto, o escritor nega ser membro da “extrema direita” e diz que quer apenas que a França “continue francesa”.

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À New Yorker, ele afirmou que não enxerga uma “concepção de raças através do ponto de vista genético”, mas sim cultural. Ou seja, para ele, não há uma raça geneticamente superior à outra, como afirmavam os nazistas, mas um movimento que acaba por substituir uma cultura pela outra. O simbolismo do véu religioso na aldeia não era incômodo por colidir com princípios da França, diz ele, mas por ter se tornado parte permanente do país.

A revista americana ainda destaca que Camus insistiu em afirmar que se sentiria “igualmente triste” se “a cultura japonesa ou a cultura africana” desaparecessem por causa da imigração.

Na concepção dele, gerações anteriores de imigrantes europeus foram atraídas pelo “amor” à França, mas os recém-chegados desde a década de 1970 - principalmente das ex-colônias da França no Magrebe e na África Subsaariana - não vieram “como amigos”. Em vez disso, acredita, vieram como “conquistadores e colonizadores, cheios de ódio e desejo de punir a França”. Ele destacou os muçulmanos por “não quererem se integrar” à sociedade francesa.

Popularização e isolamento

Somente a partir do lançamento do livro Le Grand Remplacement é que as ideias defendidas por Renaud Camus desde o final da década de 90 se tornaram conhecidas. Em contrapartida, ele foi transformado em um pária nos círculos literários e midiáticos da França.

Editores de longa data o abandonaram e desde então o escritor publica por conta própria. O livro que fez as suas ideias se tornarem famosas nunca chegou a ser traduzido para o inglês e os convites para entrevistas se esgotaram nos principais noticiários. O The New York Times destaca que amizades antigas chegaram ao fim com o posicionamento.

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Mas a tese da grande substituição ganhou força na internet. Sites de extrema direita começaram a surgir com o objetivo de “espalhar a consciência”. Políticos da direita e da extrema direita passaram a utilizar o termo. Outros livros direitistas também adotaram a ideia.

Quando um atirador matou 51 pessoas e feriu 59 em um ataque a tiros em março de 2019 contra duas mesquitas em Christchurch, na Nova Zelândia, a consequência das ideias de Camus ficaram nítidas para o mundo inteiro. Dias antes, o assassino publicou na internet um panfleto de 74 páginas com o título “A grande substituição” em que justificava o ataque.

Em agosto do mesmo ano, a ideia reapareceu durante o massacre de El Paso, quando um jovem de 21 anos matou 22 pessoas em uma loja do Walmart e disse que o objetivo era “matar tantos mexicanos quanto fosse possível”. É atribuído a ele um manifesto que chama o ataque de resposta à “invasão hispânica do Texas”.

Camus criticou a violência dos ataques, mas anos antes, em 2017, destacou o crescimento do espanhol e de outras línguas estrangeiras nos Estados Unidos como prova do fenômeno da grande substituição em outros países além da França. “Concordo totalmente com o slogan ‘não nos substituirão’ e creio que os americanos têm boas razões para estarem preocupados com seu país”, disse na época.

No perfil feito pela New Yorker em 2017, Mark Lilla, o conhecido historiador da Universidade de Columbia, afirmou que o francês é uma “espécie de tecido entre a extrema direita e a direita respeitável” por desempenhar uma oposição ao globalismo multicultural de forma “pomposa”, principalmente estética e “até mesmo bem-educado”, longe da brutalidade manifesta nos ataques que colocaram as suas ideias xenófobas em ação.

Desde 1992, Renaud Camus mora no castelo em Plieux, um local afastado dos centros urbanos. Isolado, ficou ainda mais distante da realidade francesa que busca retratar e passou a alimentar o imaginário baseado no que vê nas redes sociais, segundo reconheceu ao New York Times em 2019. Quase nunca lê jornais ou assiste televisão. “A distância é muito, muito necessária para a observação”, disse ele ao jornal americano. Do alto da torre que ele reconstruiu, ele segue imaginando hordas de invasores que não se materializam no horizonte.

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