Quem são as mulheres que comandam a revolução na política externa da Alemanha

Maior mudança no país desde a 2ª Guerra é liderada pela equipe feminina responsável por fortalecer sua segurança

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Por Katrin Bennhold e Steven Erlanger
Atualização:
8 min de leitura

BERLIM, THE NEW YORK TIMES — Foi o chanceler Olaf Scholz que, três dias após a invasão da Ucrânia pela Rússia, rompeu com o pacifismo alemão do pós-guerra e prometeu dar à Alemanha os recursos e a força necessários para liderar em questões de segurança na Europa. Agora, as pessoas encarregadas de realizar esta tarefa — a maior mudança de política externa na Alemanha desde a 2ª Guerra — são mulheres.

A ministra da Defesa, Christine Lambrecht, que está em Washington esta semana, tem supervisionado um programa de rearmamento de cerca de US$ 110 bilhões para os militares alemães.

Enquanto isso, a ministra das Relações Exteriores, Annalena Baerbock, tem elaborado a primeira estratégia de segurança nacional da Alemanha. E Nancy Faeser, responsável pela segurança interna, organiza o acolhimento de milhares de refugiados ucranianos.

É a primeira vez que a Alemanha tem todos os três cargos de segurança nacional ocupados por mulheres, o que as coloca na linha de frente de uma revolução cultural e estratégica no país.

“A segurança está nas mãos de mulheres fortes neste governo”, disse Scholz, de 63 anos, quando apresentou o seu gabinete ao país em novembro, o primeiro a ter número de mulheres equivalente ao de homens.

A ministra da Defesa da Alemanha, Christine Lambrecht  Foto: Shawn Thew/EPA/EFE

Esta mudança seria importante a qualquer momento, mas agora é especialmente notável, quando a Alemanha enfrenta a maior crise de segurança desde a Guerra Fria, com a agressão russa na Ucrânia e o consequente abalo gerado na Europa, além da crescente atenção à aliança da Otan.

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Primeira chanceler feminina

A antecessora conservadora de Scholz, Angela Merkel, fez história quando se tornou a primeira chanceler feminina, em 2005, inspirando mulheres e meninas em todo o país. Merkel recebeu elogios pela liderança na Europa, principalmente após unir o continente para duras sanções à Rússia após a anexação da Crimeia, em 2014.

Christoph Heusgen, um diplomata alemão veterano que foi conselheiro de segurança nacional de Merkel por 12 anos, resumiu o segredo do sucesso de sua ex-chefe em questões de política externa e segurança: “Sem vaidade, sem testosterona”.

Mas, ao contrário de Scholz, Merkel nunca alcançou a paridade de gênero em seu governo. Só agora, um quarto de século depois de Madeleine Albright, que morreu semana passada, se tornar a primeira secretária de Estado dos EUA, a Alemanha tem sua primeira ministra das Relações Exteriores e a primeira ministra do Interior, embora já tenha tido duas ministras da Defesa.

O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, e a ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock Foto: REUTERS / REUTERS

Alguns notam uma analogia com a mudança na política externa, que por tanto tempo iludiu os tradicionalmente mais pró-militares democratas-cristãos de Merkel. Assim como foi necessário um chanceler masculino para alcançar a paridade de gênero no governo, foi necessário um governo progressista para anunciar 100 bilhões de euros para reformar as forças armadas alemãs, disse Roderich Kiesewetter, um legislador conservador e ex-soldado.

Se seu próprio partido tivesse anunciado isso, “o resultado teria sido tumulto, agitação pública e manifestações — todo o chamado movimento pela paz nos chamaria de belicistas”, disse Kiesewetter.

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Mudança de mentalidade

Em vez disso, cabe a Lambrecht, uma antiga defensora desse movimento pela paz, comprar drones armados e uma nova geração de caças que podem lançar bombas nucleares. A ministra se juntou aos social-democratas de Scholz na década de 1980, quando marchou contra a energia nuclear e a favor do desarmamento.

Ex-ministra da Justiça, aos 56 anos, Lambrecht é considerada de esquerda e não tem experiência anterior no Exército. De muitas maneiras, ela personifica a mudança de longo alcance na mentalidade alemã desde que a Rússia atacou a Ucrânia em fevereiro.

Isso porque, antes da guerra, Lambrecht falou por muitos social-democratas quando insistiu em “não atrair” o gasoduto Nord Stream 2 da Rússia para a Alemanha “pelo conflito na Ucrânia”. Ela defendeu a proibição da Alemanha de remessas de armas para zonas de conflito, oferecendo à Ucrânia cinco mil capacetes e um hospital de campanha.

O chanceler alemão, Olaf Scholz, conversa com a ministra da Defesa, Christine Lambrecht Foto: EFE / EFE

Agora, ela orgulhosamente descreve a Alemanha como um dos maiores fornecedores de armas para a Ucrânia e defende os planos de aumentar os gastos militares para mais de 2% do produto interno bruto.

Temos que dizer adeus à ideia de que vivemos em uma Europa pacífica”, disse Lambrecht em entrevista recente. “As ameaças estão se aproximando. Elas se aproximaram. A ideia de que existem fronteiras que são aceitas por todos acabou. Vimos como Putin está atropelando todo o direito internacional.”

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Ela é sincera e, para os observadores, isso mostra sua credibilidade para aqueles que ainda precisam ser convencidos. “Para ser honesta, não poderia ter imaginado isso antes dessa guerra ofensiva brutal”, disse ela. “Existe um antes e um depois.”

Medidas concretas

Quando Lambrecht encontra o conselheiro de segurança nacional do presidente Joe Biden, Jake Sullivan; o secretário de Defesa Lloyd Austin; e membros do Congresso em Washington esta semana, ela tem uma mensagem para eles.

“Estamos ao lado de nossos aliados e estamos conscientes da responsabilidade que devemos e queremos assumir nesta aliança. Não estamos apenas conversando, mas tomando medidas concretas.”

Uma dessas medidas é desenvolver uma estratégia de segurança nacional, a primeira da Alemanha, e a responsável por isso é a ministra das Relações Exteriores, Baerbock, que está determinada a consagrar o consenso atual sobre uma política externa mais forte e baseada em valores em uma doutrina que perdura. Segundo ela, porém, este consenso é frágil.

“Se não tivesse havido a guerra, algumas dessas decisões talvez nunca tivessem sido tomadas”, disse ela. “Quero ter certeza de que não esqueceremos em quatro meses ou mesmo em quatro anos por que tomamos algumas dessas decisões.”

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Para Baerbock, membro do Partido Verde, não se trata apenas de uma mudança de política. É uma mudança na forma como a Alemanha se vê e se define, não mais se escondendo atrás de sua história, mas tentando ativamente moldar o futuro.

“É bom conhecer a história, mas não podemos formular o futuro apenas com o passado”, disse. “Como alemães, temos uma responsabilidade especial, mas temos que trabalhar para o futuro.”

Nova geração na política alemã

Aos 41 anos, Baerbock representa uma nova geração na política alemã, que atingiu a maioridade após a queda do Muro de Berlim. Como outros de sua geração, ela não tem medo de falar sobre “liderar” — o que é um tabu em uma Alemanha traumatizada pela memória de Adolf Hitler.

Defendendo abertamente uma “política externa feminista”, Baerbock descreveu sua chegada como “um choque cultural” para a comunidade de segurança da Alemanha dominada por homens, algo que ela compartilha com Faeser, a ministra do Interior.

“Deve ser normal no ano de 2022 que as mulheres estejam chefiando agências de segurança”, disse Faeser em entrevista. “É um sinal importante e bom para a Alemanha.”

Quando ela não está planejando como acolher refugiados ou promover um sistema conjunto de registro e distribuição entre os 27 países da UE, o trabalho de Faeser também inclui vigiar infraestrutura crítica em risco de ataques cibernéticos russos e campanhas de desinformação. A Alemanha tem uma comunidade russo-alemã considerável.

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“Desde que a guerra ilegal começou, vimos campanhas russas de desinformação vendendo a narrativa de que a Ucrânia precisa ser libertada”, disse Faeser.

Comentários sexistas

Até agora, Faeser foi amplamente poupada dos comentários sexistas que suas colegas ministras receberam. Baerbock, que concorreu como candidata verde a chanceler antes de ingressar no governo de Scholz em uma coalizão, foi alvo de várias campanhas de desinformação on-line, algumas delas orquestradas a partir de contas russas.

Mas com o renascimento das forças armadas da Alemanha agora nas manchetes, é Lambrecht, a ministra da Defesa, que se tornou o alvo principal.

“Essa ministra sabe fazer guerra?” — perguntou recentemente o Bild, o tablóide mais vendido da Alemanha. Por enquanto, Lambrecht leva as críticas com leveza.

“Honestamente, estou muito ocupada e não tenho tempo para pensar por que algumas coisas estão escritas sobre mim”, disse ela antes de embarcar para Washington. “Meu trabalho é tornar os militares significativamente melhores. Julgue-me no final.”