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Cérebro: no controle ou controlado?

A fusão do sistema nervoso humano com a internet pode criar uma rede mundial de mentes ou um sistema totalitário

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Por Redação Link
Atualização:

??? A fusão do sistema nervoso humano com a internet pode criar uma rede mundial de mentes ou um sistema totalitário

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Por Sue Halpern The New York Review of Books

Em abril, quando pesquisadores da Universidade Washington, em St. Louis, nos EUA, relataram que uma mulher com eletrodos sobre a região do cérebro responsável pela fala moveu um cursor na tela do computador apenas ao pensar em certos sons, sem pronunciá-los, parecia que a Singularidade – o antigo sonho que origina o homem-máquina – havia chegado. Na mesma época, na Universidade Brown, cientistas testaram com sucesso outra interface entre cérebro e computador, que permitiu que uma mulher movesse um cursor só com o pensamento. Enquanto isso, na Universidade do Sul da Califórnia, uma equipe de engenheiros biomédicos teve sucesso na confecção de nanotubos de carbono para construir uma sinapse, primeiro passo na marcha rumo a um cérebro sintético.

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No mesmo câmpus, o dr. Theodore Berger, que pesquisa há décadas próteses neurais, começou a implantar em ratos um dispositivo que contorna o hipocampo de um cérebro danificado e trabalha no lugar da região afetada. O hipocampo é crucial na formação das memórias, e tal invenção promete uma solução tanto para a perda normal da memória corriqueira quanto à perda patológica associada a doenças como o mal de Alzheimer. Se essa for a Singularidade, ela é mais do que benigna: é benéfica.

Prótese. Michael Chorost ficou surdo em 2001 e tem implantes cocleares em seus ouvidos internos. O resultado do implante, como diz em suas memórias, Rebuilt: How Becoming Part Computer Made Me More Human (Reconstruído: como me tornar parte computador fez de mim mais humano), de 2005, mudou sua vida. E como deixa claro seu novo livro, World Wide Mind: The Coming Integration of Humanity, Machines, and the Internet (Rede mundial de cérebros: a integração vindoura entre humanidade, máquinas e a internet), ele é defensor da ideia de instalar computadores intracerebrais em todos. Assim a internet “seria parte integral do ser humano e seu uso seria tão natural quanto o de nossas próprias mãos”.

Binário. Há mais de 25 anos, um autor científico chamado David Ritchie publicou The Binary Brain (O Cérebro Binário) que celebrava “a síntese da inteligência humana e da inteligência artificial” a partir de algo a que chamou de “biochip”: “É maravilhoso contemplar essas possibilidades”, escreveu. “Plugaríamos à memória de um computador tão facilmente como calçamos sapatos. Nossa mente seria preenchida pelas informações armazenadas no computador e poderíamos virar especialistas em qualquer assunto instantaneamente. É possível que vejamos isso antes mesmo do fim do século.” Vinte e seis anos depois, Chorost diz quase o mesmo: o cérebro é limitado demais. “A velocidade do aprimoramento é inferior à vista no âmbito da tecnologia”.

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O sonho da “transmutação” de Chorost tem suas raízes num equívoco ingênuo do que é o mecanismo de busca online, em particular o Google. A maioria de nós não pensa muito no algoritmo que controla o site. Faça uma pergunta, receba uma resposta – não parece muito diferente de uma consulta a uma enciclopédia ou ao índice de um livro. Mas a rede não é um livro, e sim um volume aleatório, desorganizado cada vez maior sobre tudo. Fazer uma busca é mergulhar neste caos e, ao usarmos o Google, estamos recorrendo à sua fórmula, patenteada e vigiada, composta por “500 milhões de variáveis e 2 bilhões de termos”.

As cifras sugerem uma defesa impermeável contra influências tendenciosas, uma objetividade científica que permite que a resposta certa venha à tona. Parece tratar-se de um sistema que perpetua a si mesmo, já que usa a popularidade (o número de links para uma página) como substituto da importância – quanto mais um link é clicado, maior a probabilidade de ele aparecer entre na busca.

Isto criou uma indústria que tapeia esse sistema. Há relatos de empresas que pagaram para distribuir links num grande número de páginas para galgar posições no ranking. E os sites só chegam ao topo dos resultados de busca porque uma mão invisível os empurra até lá.

Mas não é só isso que molda a busca. Como documenta Eli Pariser em seu assustador livro The Filter Bubble: What the Internet is Hiding from You (O filtro-bolha: o que a internet está escondendo de você), desde dezembro de 2009 o Google tenta adaptar cada busca ao perfil da pessoa que a faz. Em outras palavras, o processo de busca se tornou “personalizado”, o que equivale a dizer que, em vez de ser universal, ele é idiossincrático e imperativo. “A maioria de nós supõe que, ao buscar um termo usando o Google, todos nós obtemos os mesmos resultados”, observa Pariser. Assim, “recebemos o resultado que o algoritmo do Google sugere como o melhor para você – e outra pessoa pode obter resultados completamente diferentes para uma busca idêntica. Ou seja, não há mais um Google padrão”. É como se consultássemos o mesmo tema numa enciclopédia e cada um encontrasse resultados diferentes – sem supor essa diferença, já que usamos uma referência padrão.

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Filtro. Entre as consequências negativas disso está o fato de, por meio do ajuste das informações recebidas à percepção que o algoritmo tem de quem você é, o Google lhe orienta a acessar material que apenas reforça sua visão de mundo. Uma busca por provas do aquecimento global feita por um ambientalista trará resultados diferentes do que uma pesquisa idêntica feita por um executivo do petróleo. (E sem declarar sua opção, o mecanismo a descobrirá isto por conta própria.) E a internet começa a nos isolar dos pontos de vista contrários aos nossos, enquanto passa a impressão de ser neutra.

A preocupação de Pariser é: ao termos nossas ideias refletidas para nós mesmos, estamos nos doutrinando com nossas próprias posições, sem perceber. “A democracia exige que vejamos as coisas a partir do ponto de vista uns dos outros. Em vez disso, estamos cada vez mais envolvidos por nossos filtros-bolha”.

Não é difícil ver aonde tudo isto poderia levar – o quão facilmente qualquer grupo dotado de uma pauta (lobistas, corporações, governos) seria capaz de inundar o debate com informações centrais para a sua causa. Quem seria capaz de perceber? Não Michael Chorost, com sua lealdade cega ao Google – que ele crê ser parte central do “novo encéfalo, hipocampo e centro de armazenamento de memória explícita de longo prazo” da futura Rede Mundial das Mentes –, é comparável à sua ingenuidade política. Um governo “que usasse a Rede Mundial das Mentes para exercer abertamente o controle social teria de ser mais ameaçador e totalitário que qualquer governo atual”, escreve. “A evolução tende a extinguir sociedades totalitárias porque, a longo prazo, elas são ineficientes e afeitas ao desperdício.”

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Agora compare isto às palavras do homem que inventou a world wide web, o inglês Timothy Berners-Lee, publicadas no fim do ano passado na revista Scientific American: “A rede como a conhecemos está sob ameaça. Alguns de seus habitantes mais bem sucedidos começaram a erodir seus princípios. Os governos – tanto democráticos quanto totalitários – estão monitorando a navegação das pessoas na rede, colocando em risco importantes direitos humanos.” Em sua infância, a web era uma coleção de páginas pessoais que não dependia das grandes empresas de mídia e nem do seu dinheiro, e que não era impulsionada por interesses comerciais.

O cientista Jaron Lanier testemunha essa mudança em seu livro, Gadget – Você Não é um Aplicativo (Ed. Saraiva), e recorda esta época: “Aprendemos muito sobre o potencial humano. Quem imaginaria que milhões de pessoas investiriam tanto num projeto sem motivação comercial, ameaça de castigo ou quaisquer outros fatores clássicos de motivação humana? Fizemos algo coletivamente só porque era uma boa ideia. E foi lindo.”

Renda. O comércio entrou na dança, quase por acidente, quando Larry Page e Sergey Brin, pais do Google, decidiram associar anúncios ao site para financiá-lo. Não queriam criar a maior plataforma de publicidade da história, nem deslocar a estratégia de marketing da tentativa de empurrar (‘pushing’) produtos aos consumidores para o esforço de atraí-los (‘pulling’) individualmente para certos produtos. Mas foi isto que ocorreu. Tais anúncios parecem inofensivos – afinal, se a publicidade é inevitável, não seria preferível receber anúncios que sejam de fato mais relevantes? Mas, para atrair o consumidor, as empresas acreditam que precisam conhecer não só seus interesses, mas também aquilo que o agradou antes, idade, gênero, onde mora, escolaridade, etc.

Há cerca de 500 empresas capazes de rastrear cada movimento seu na internet, extraindo a matéria-prima da rede e vendendo-a aos marqueteiros. (“Pare de chamar a si mesmo de usuário”, alerta Lanier. “Você está sendo usado.”) Saber que você sofre de sobrepeso, deixou de pagar uma prestação do carro, lê romances históricos e passa muito tempo a bordo de aviões é um conhecimento que não apenas chega a outras pessoas, como também é de grande valor monetário para elas.

O mesmo pode ser dito a respeito de dados de localização como onde você está e onde esteve, como descobrimos com a revelação de que tanto Apple quanto Google estavam rastreando usuários de tablets e smartphones e armazenando esses dados.

Até dispositivos de leitura como o Kindle, da Amazon, prestam atenção àquilo que o usuário está fazendo: sublinhe um trecho num livro do Kindle, e este trecho é enviado de volta à Amazon. O potencial para abusos das liberdades civis é vasto neste ponto. Enquanto o FBI, por exemplo, precisa de um mandato para vasculhar seu computador, Pariser alerta que “se usa o Yahoo, o Gmail ou o Hotmail, você ‘perde imediatamente suas proteções constitucionais’”.

Na esfera comercial, os marqueteiros estão indo além dos fatos na tentativa de determinar não apenas aquilo que você comprou, mas porque você realizou aquela compra. Depois que tiverem elaborado seu “perfil de persuasão”, estes anúncios serão refinados ainda mais. E, se as empresas de marketing são capazes de fazer isto, por que não políticos, governo e empresas que desejam influenciar a opinião pública? “Há certos momentos e lugares e estilos de argumentação que nos tornam mais suscetíveis a acreditar naquilo que nos dizem”, observa Pariser.

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Uma coisa que nós – habitantes da internet – passamos a aceitar sem muita reflexão é que o comércio seja um aspecto bastante positivo da guinada da rede no sentido das redes sociais. Sites como Foursquare, Loopt e Groupon fazem compras e marcam o centro do encontro social. Usuários do Foursquare sonham em se tornar os “prefeitos” de padarias e lojas de roupas ao visitá-las mais do que os outros. Eles exibem “distintivos” que “conquistaram” ao se tornarem clientes habituais de certos estabelecimentos, como se fossem troféu. Usuários do Facebook que clicam no botão “curtir” na página de um produto podem disparar a exibição de um anúncio do produto na página de seus “amigos”. Empresas como Twitalyzer e Klout analisam dados do Twitter, do Facebook e do LinkedIn para saber quem são as pessoas mais influentes da rede e vendem esta informação a empresas que então seduzem os mais influentes a vender seus produtos, ou “fazer o proselitismo de sua marca”.

Isso, de acordo com o Wall Street Journal, “detonou uma corrida entre os junkies das mídias sociais que, ansiosos para receberem privilégios e terem motivos de fanfarronice, trabalham duro para tapear o sistema e melhorar a própria pontuação”. Como destaca Lanier: “Do ponto de vista empresarial, a única esperança para os sites de rede social é encontrar uma fórmula mágica na qual alguma forma de violação da privacidade e da dignidade se torne aceitável”. Ao que parece, a mágica já está em ação.

Individualidade. O paradoxo da personalização e da expressão de si promovidas pela internet por meio do Twitter, do Facebook e até mesmo do Chatroulette está no fato de que isso diminui ao mesmo tempo o valor da pessoa e da individualidade. Basta ler os comentários em posts de blogs e artigos: fica óbvio que violar a dignidade – a de outra pessoa e, por conseguinte, a própria dignidade – virou moeda barata em ampla circulação.

O objetivo deste tipo de ataque é desferir um golpe contra a personalidade de alguém, minando sua integridade. Chorost sugere que o motivo pelo qual a internet atual não fomenta o tipo de empatia que ele vislumbra para o futuro, quando “sentiremos eletronicamente as vidas íntimas dos outros”, está no fato de ela ainda não ter se tornado parte integral de nossos corpos, mas a explicação de Lanier parece mais convincente.

A “mente coletiva” criada por meio de nossas conexões eletrônicas sublima o indivíduo – e é isto que define uma consciência coletiva. Como observa a socióloga Sherry Turkle: “em rede, estamos juntos, mas nossas expectativas em relação uns aos outros são tão reduzidas que podemos nos sentir totalmente sós. E há o risco de passarmos a enxergar os outros como objetos – nos quais procuramos só o que consideramos útil ou divertido.”

Chorost descreve as maravilhas de uma amizade no âmbito neural. “Ter cérebros semelhantes a computadores simplificaria muito o processo de extrair informações de um cérebro e enviá-las a outro. Suponha que você tenha um computador deste tipo, e que esteja conectado a outra pessoa por meio da Rede Mundial das Mentes. Você vê um gato na calçada diante de si. Seu sistema percebe a atividade numa grande parte dos neurônios que constituem no seu cérebro a representação invariável de um gato. Para permitir que sua amiga saiba que você está vendo um gato, o sistema envia quatro letras – G A T O– ao sistema implantado na outra pessoa. O sistema desta pessoa ativa a representação invariável de um gato no cérebro dela, e a pessoa então a vê. Ou, para ser mais preciso, ela vê uma memória de um gato que será elaborada a partir de seus circuitos neurais. Seriam tantos os detalhes perdidos numa transmissão deste tipo: a raça do gato, o que ele está fazendo. Mas uma informação fundamental seria transmitida: sua amiga saberia que você está vendo um gato.”

É claro que, se você tivesse dito isto por meio de um telefonema, SMS ou e-mail, sua amiga também saberia que você estava vendo um gato, e saberia também qual era a aparência do animal, aquilo que ele estava fazendo, e também que aquele era um acontecimento importante a ponto de você falar daquilo. Será mesmo que desejamos ser informados a cada vez que uma pessoa conhecida vir um gato?

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Extensões. É fácil fazer piada com isso, assim como é fácil descartar a Singularidade como uma mera fantasia de ficção científica, mas isso é uma tolice ainda maior. É claro que um dos grupos mais atraídos pela ficção científica é o dos programadores de computador, que conseguiu, em menos de uma geração, mudar a forma com a qual fazemos pesquisas, lemos livros, nos comunicamos uns com os outros, pagamos nossas contas, etc. Como aponta Lanier: “Nós (programadores) inventamos extensões para o seu ser, como olhos e ouvidos remotos (webcams e celulares) e memória expandida (o universo das pesquisas em rede). Elas se tornam estruturas por meio das quais a pessoa se conecta ao mundo e aos outros. Alteramos sua filosofia por meio de uma manipulação direta de sua experiência cognitiva. É preciso só um pequeno grupo de engenheiros para criar uma tecnologia capaz de moldar toda a experiência futura da humanidade com uma velocidade incrível.”

As previsões dizem que só perto de 2015 será impossível instalar mais circuitos num chip de silicone sem superaquecê-lo. Mas, até lá, é possível que os computadores já tenham migrado para chips magnéticos de memória de acesso aleatório (MRAM), que operam com circuitos subatômicos. Um dos principais criadores do MRAM foi Stuart Wolf, que desenvolveu a tecnologia na Agência de Pesquisa de Projetos Avançados de Defesa (Darpa), a mesma que inventou a Arpanet, precursora da internet como a conhecemos. Em entrevista concedida à Fortune há alguns anos, Wolf vislumbrava o futuro da computação e imaginou que logo estaríamos usando faixas na cabeça que se ligam diretamente ao cérebro e nos permitem, entre outras coisas, conversar sem falar, ver aquilo que está depois da esquina e até dirigir só com o pensamento.

Outro ramo da Darpa está investindo milhões de dólares no desenvolvimento de um “capacete telepático” para o campo de batalha, que permitiria aos soldados se comunicarem sem recorrer às palavras, usando só a tradução das ondas cerebrais, que seriam “lidas” por sensores incorporados ao capacete e distribuídos no couro cabeludo, transformando-as em mensagens de rádio audíveis.

Sinais. Já no ano 2000, a Sony começou a trabalhar numa forma de transmitir sinais de games para o cérebro usando pulsos de ultrassom para modificar e criar imagens sensoriais, proporcionando assim uma experiência de jogo envolvente e inescapável. Recentemente, cientistas da Freie Universität de Berlim chegaram a uma amostra da visão de Stuart Wolf ao prever um carro pilotado somente com o pensamento. Sensores de encefalograma decodificavam os padrões de ondas cerebrais correspondentes a “direita”, “esquerda”, “frear” e “acelerar”, que foram conectados a um veículo controlado por computador, de modo que o motorista “pôde controlar o carro sem problemas, com só um pequeno atraso entre o pensamento do comando e a resposta do carro”.

Além disso, um grupo da Universidade de Southampton, no Reino Unido, desenvolveu uma interface entre cérebro e computador que permite que as pessoas se comuniquem de cérebro para cérebro sem recorrer ao pensamento, mais uma vez usando sensores de eletroencefalogramas para possibilitar que uma pessoa pense em “esquerda” (representada por um zero) ou “direita” (representada por um 1), envie um destes dígitos a uma segunda pessoa, também ligada a eletrodos que também estão conectados a um computador. O sistema recebe o dígito e, depois que ele é entendido, permite que a segunda pessoa devolva o dígito à primeira por meio de um diodo luminoso, que é “lido” pelo córtex visual daquela primeira pessoa. Não é uma integração sem som, sem palavras e quase sem pensamentos entre nós, mas trata-se de um quarto ou quinto passo rumo a um futuro que está se tornando cada vez mais visível.

Jaron Lanier tem razão: você ainda não é um aplicativo – ainda. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

—-Leia mais:Link no papel – 20/06/2011

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