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Opinião|A tragédia de São Sebastião e o licenciamento ambiental

Se a sociedade não quiser se compadecer a cada nova tragédia ambiental e social, precisa começar a defender um instrumento de licenciamento mais rigoroso

Por Tadeu Salgado Ivahy Badaró Júnior

“Ih, lá vêm aqueles ambientalistas associando toda tragédia ao licenciamento ambiental.” Sim, amigos, são temas intimamente ligados. Não se discute que o que aconteceu em São Sebastião é decorrência da omissão de autoridades públicas em tomar quaisquer providências para prevenir riscos há muito já conhecidos. Caberá discutir, sim, ao seu tempo e com sobriedade, quais são essas autoridades e qual a medida de suas responsabilidades.

Mas há que debater também algumas questões de fundo. A primeira: por que há tantas pessoas vivendo em áreas de risco em São Sebastião? Para além de questões políticas, sociais e econômicas mais profundas, um estudo contratado pelo governo do Estado e publicado em 2010 dá algumas pistas sobre a resposta a essa indagação.

Intitulado Avaliação Ambiental Estratégica do Litoral Paulista das Atividades Portuárias, Industriais, Navais e Offshore (AAE Pino), esse estudo se propôs a projetar o que aconteceria com o litoral norte do Estado de São Paulo num inédito cenário de abrupta transformação socioeconômica da região, induzida pela implantação concomitante de uma série de megaempreendimentos ligados à logística de transporte (ampliação portuária e de malha rodoviária) e à extração e produção de óleo e gás pelo projeto pré-sal e suas derivações.

A primeira e alarmante conclusão dizia respeito à indução de um anormal crescimento populacional. Segundo dados reunidos pelo estudo, àquela altura São Sebastião crescia duas vezes mais que a média do Estado, e as projeções apontavam para uma aceleração ainda maior desse crescimento.

Tal adensamento, alertava o estudo, geraria uma sobrecarga em diversos setores, para a qual a região não estava preparada. Sem planejamento adequado, a região sofreria com a demanda sanitária, a segurança hídrica e a ocupação em áreas de risco ou ambientalmente sensíveis.

Especificamente sobre pessoas vivendo em condições precárias, os dados eram assustadores. Segundo a AAE, de 2000 a 2010 a proporção de pessoas vivendo em assentamentos precários em São Sebastião havia saltado de pouco mais de 5% para mais de 35%, com tendência de crescimento em proporções ainda maiores. E esse fato seria agravado por dois fatores: a geografia local e o fenômeno climático.

Tratando-se de um município espremido entre o mar e a encosta da montanha, cuja planície já está quase toda ocupada por hotéis, pousadas e casas de segunda residência, naturalmente esse contingente populacional subiria o morro. Sobretudo os mais pobres, que não têm dinheiro para arcar com sua moradia na valorizadíssima planície, restando a eles virar-se como podem, de forma precária, na encosta da serra. Embora devesse ser óbvio, vale lembrar que assim o fazem por falta de opção, e não por amor à adrenalina.

Por fim, adiciona-se o fator climático: eventos climáticos extremos há muito deixaram de ser imprevisíveis. Ao contrário, segundo os últimos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), serão cada vez mais intensos e frequentes e atingirão, em maior medida, as regiões litorâneas. Sabe-se, também, quais as áreas mais vulneráveis a eles.

Em arremate, o estudo concluía: se nada for feito, a população local suportará gravíssimas consequências. Concluía, portanto, que estes impactos indiretos e indesejáveis deveriam ser considerados – e solucionados – na esfera de planejamento e de projetos.

Mas como incorporar políticas públicas na esfera de planejamento, se o pensamento ultraliberal amplamente dominante sustenta que investir em política social e ambiental não é investimento, é gasto?

Restou ao Ministério Público do litoral norte (Ministério Público do Estado de São Paulo e Ministério Público Federal) indagar aos órgãos licenciadores: ora, se é de conhecimento público que a implantação concomitante de megaempreendimentos, nas atuais condições, estrangulará a região em sua demanda hídrica, habitacional e sanitária, como seguir licenciando um a um os projetos sem exigir respostas a esses problemas?

E aí nos deparamos com outra face perversa do ultraliberalismo, aquela que sustenta que o licenciamento deve ser simples, rápido e, sobretudo, raso, para não atrapalhar o desenvolvimento econômico. Questões complexas não devem ser trazidas para dentro do licenciamento. Fogem do escopo, dizem.

Ou seja, o Estado não resolverá os problemas com políticas públicas e a iniciativa privada também não quer essa conta para ela. Deixa estourar e, depois, mandamos helicópteros e fazemos algumas doações.

Ocorre que, em 1988, a sociedade brasileira fez um pacto contemplando os interesses de seus mais diversos setores, naquilo que chamamos de Constituição federal. Nesse pacto, asseguramos a proteção jurídica à propriedade privada, mas a condicionamos ao cumprimento de sua função socioambiental. Garantimos a livre iniciativa e o desenvolvimento econômico, mas ordenamos a sua compatibilização com a proteção ambiental e social.

No Direito Ambiental, essa ideia é traduzida, entre outras normas, no princípio do poluidor-pagador. É dizer: sabemos que toda intervenção humana no ambiente provoca impactos. Logo, se você vai impactar com sua atividade, você que cuide de prevenir, mitigar e compensar.

Cabe ao licenciamento definir o que é impacto significativo que deve ser prevenido, mitigado e compensado, como condição para o desenvolvimento de uma dada atividade econômica. E é precisamente aqui que reside o ponto fulcral. De um lado, os defensores do licenciamento drive-thru sustentam: meu impacto é somente aquilo que é diretamente causado por mim, e olhe lá.

Nós sustentamos o oposto: se estão na relação de causalidade e são significativos, os impactos de sua atividade, ainda que indiretamente e no meio social, são seu problema também. E se o proponente do projeto não pode resolvê-lo diretamente, o licenciamento ambiental deve, ao menos, assegurar que quem de direito apresente a solução.

Um exemplo prático: se a rodovia induzirá o crescimento populacional, gerando insegurança hídrica, posso até não exigir que a concessionária que opera rodovias resolva o problema, mas só posso licenciar se a concessionária que cuida do abastecimento de água me garantir a solução para ele (e para isso, diga-se, quanto mais pública for a prestadora do serviço sanitário, melhor).

Ocorre que, nos últimos tempos, o ultraliberalismo avançou suas garras também sobre os órgãos licenciadores, que passaram a advogar pelo reducionismo de seu próprio instrumento de trabalho. Assim é no campo da interpretação do que é impacto significativo a ser internalizado no licenciamento. E também no campo legislativo, no qual se vê a proliferação de iniciativas legislativas que buscam fragilizar o licenciamento, sem oposição contundente de quem deveria protegê-lo.

No entanto, isso pode mudar. Os órgãos licenciadores não são seus dirigentes nem precisam se submeter à agenda do desenvolvimento irrefletido e irresponsável. São também de seus valorosos corpos técnicos e são, sobretudo, da sociedade. E esta, se não quiser se compadecer a cada nova tragédia ambiental e social, precisa começar a defender um instrumento de licenciamento mais rigoroso – o que compreende a internalização de impactos indiretos e sociais, cumulativos e sinérgicos, e, sobretudo, climáticos.

Do contrário, nos restarão os helicópteros e as doações.

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PROMOTOR DE JUSTIÇA DO GAEMA DO LITORAL NORTE, DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Opinião por Tadeu Salgado Ivahy Badaró Júnior