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A política do saneamento básico

Por Magno Karl
Atualização:
Magno Karl. Foto: Arquivo pessoal

O Novo Marco do Saneamento Básico voltou ao centro do debate público nas últimas semanas, após a tentativa do governo Lula de alterá-lo por meio de dois decretos. A reação da Câmara dos Deputados, sustando partes da iniciativa do executivo que revertia avanços na legislação, foi a primeira derrota importante de Lula em seu novo mandato. O caso destacou não apenas as dificuldades de articulação política do Planalto no Congresso, mas indicou também a crescente importância da matéria para a agenda nacional.

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As metas impostas pelo marco anteciparam em quase 30 anos a previsão de universalização dos serviços de água e esgoto no país. A legislação introduziu novas regras para a prestação de serviços de fornecimento de água e esgotamento sanitário, extinguiu a celebração de contratos de programa sem concorrência e os substituiu por licitações abertas a empresas privadas, trazendo mais possibilidades de recursos para investimentos e competição para as estatais que ainda dominam o setor.

Apesar de ter sido inicialmente apresentada ao Congresso Nacional na forma de Medida Provisória, o Marco do Saneamento foi construído pelo parlamento e pela sociedade civil, num processo de tramitação que levou quase um ano. Ao tentar passar por cima desse trabalho do legislativo por meio de dois decretos, Lula comprou uma briga que a ainda frágil articulação política de seu governo não conseguiu vencer.

Mesmo alertado por lideranças da Câmara dos Deputados, o executivo não recuou e viu trechos importantes de um dos decretos, exatamente aqueles que driblavam a necessidade das estatais participarem de concorrências, serem sustados. Mais do que um aviso a Lula sobre a necessidade do governo de negociar sua relação com o parlamento, a votação mostrou a resistência dos deputados em enfraquecer um projeto construído pela casa em favor das preferências políticas dos novos ocupantes do Palácio do Planalto.

E os deputados resistem porque o saneamento básico entrou na pauta política do país. Os números seguem chocantes. Conforme dados do Instituto Trata Brasil, quase 100 milhões de brasileiros não têm acesso a serviços de coleta de esgoto e, em média, mais de 5 mil piscinas olímpicas cheias de dejetos são despejadas diariamente na natureza. Mas o impacto positivo da legislação criou seu próprio bloco político de apoio -envolvendo governadores, senadores e deputados de renome- depois de multiplicar por 10 os investimentos na área no primeiro ano após a sanção das novas regras.

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Sem entender os sinais dados pelo legislativo, o governo promete seguir atacando o Marco do Saneamento no Senado. Jader Barbalho Filho, ministro das Cidades, afirmou nesta semana que a derrubada de parte dos decretos na Câmara transformou o texto numa "colcha de retalhos", sem se atentar para o fato de que foi o governo do qual faz parte que utilizou decretos para desfigurar a legislação. A insistência na matéria, derrotada por mais de 150 votos de diferença na Câmara dos Deputados, demonstra o peso estratégico que o governo Lula deposita nas estatais do setor -cujo monopólio de décadas resultou em loteamento político de sua gestão, serviços deficientes, baixa capacidade de investimentos, e metade dos brasileiros sem acesso aos seus serviços.

A universalização do saneamento é um ganha-ganha social: comunidades com serviços de água e esgoto têm crianças com melhor desempenho escolar, cada real investido em saneamento significa quatro reais a menos em gastos na saúde. Apesar de ser um drama visível e afetar uma parcela significativa da população brasileira, a ausência de saneamento básico carecia de atenção no debate público, mas, principalmente, de normas que viabilizassem mais investimentos no setor.

O Marco do Saneamento não é a vitória de um governo ou a entrega de uma legislatura do Congresso Nacional, mas uma conquista da sociedade brasileira. Água encanada e limpa, esgoto coletado e tratado são investimentos na preservação ambiental, na inclusão social e na dignidade humana. Os interesses políticos na gestão de empresas estatais não podem se sobrepor à oportunidade de universalizarmos os serviços de saneamento na próxima década. A sociedade conta com o Parlamento na defesa desse avanço civilizatório. E é hora do Lula pragmático de outros tempos entender a importância e a oportunidade que as novas regras oferecem ao país.

*Magno Karl é cientista político e diretor executivo do Livres

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