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Opinião|Calar um órgão de comunicação com quase um século de existência é impensável em uma democracia

convidado
Atualização:
César Dario Mariano da Silva. Foto: ARQUIVO PESSOAL

Permitam-me fazer algumas observações de forma objetiva acerca dos fundamentos da Ação Civil Pública promovida pelo Ministério Público Federal contra a Jovem Pan.

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Imputações - art. 53, alíneas a, d f, i, j e l, da Lei nº 4.117/1962 : a) incitar a desobediência às leis ou decisões judiciárias; d) fazer propaganda de guerra ou de processos de subversão da ordem política e social; f) insuflar a rebeldia ou a indisciplina nas forças armadas ou nas organizações de segurança pública; i) caluniar, injuriar ou difamar os Poderes Legislativos, Executivo ou Judiciário ou os respectivos membros; j) veicular notícias falsas, com perigo para a ordem pública, econômica e social; e l) colaborar na prática de rebeldia, desordens ou manifestações proibidas de forma sistemática.

Os fundamentos fáticos são basicamente os seguintes:

1) Urnas eletrônicas não confiáveis; 2) Críticas ácidas à atuação do STF, muitas vezes políticas; 3) Incentivo ao descumprimento da legislação e a decisões judiciais; 4) injustiça da condenação do Deputado Daniel Silveira e o não cumprimento do decreto de graça que lhe foi concedido; 5) Emprego do art. 142 da CF; 6) apoio às manifestações ilegais; 7) inércia do presidente do Senado quanto aos pedidos de impeachment; 8) Incentivo da população à desordem, legitimando, inclusive, os atos de 08/01/2023.

Pedidos principais: a) direito de resposta 15 vezes ao dia por quatro meses; b) Indenização por dano moral coletivo de R$ 13.406.672,80; c) cancelamento das três outorgas de radiodifusão.

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A primeira indagação a ser feita é se a legislação aplicável, Lei nº 4117/1962, que foi alterada em 1967 (regime militar), justamente nos artigos que tratam do abuso dos meios de comunicação, foi recepcionada pela Constituição Federal?

Anoto que esta legislação só sobrevive no que tange à radiodifusão e a seus dispositivos penais, posto que os demais dispositivos foram revogados pela Lei nº 9.472/1997.

Vejam que interessante o artigo 54 da Lei nº 4117/1962:

"São livres as críticas e os conceitos desfavoráveis, ainda que veementes, bem como a narrativa de fatos verdadeiros, guardadas as restrições estabelecidas em lei, inclusive de atos de qualquer dos poderes do Estado".

De acordo com este dispositivo, mesmo que os fatos forem verdadeiros, a lei poderá limitar sua divulgação, o que claramente implica censura, o que era regra à época do regime militar.

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Hodiernamente, além dos dispositivos constitucionais que asseguram a liberdade de manifestação do pensamento e vedam a censura, tanto como direito individual (art. 5º, IV e IX), quanto como direito dos comunicadores em geral (art. 220, §§ 1º e 2º), o artigo 359-T da Lei nº 14.197/2021, dispõe: "Não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais".

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Este dispositivo, por ser causa de exclusão da tipicidade (ou antijuridicidade para os que assim entendem) pode ser aplicado por analogia aos demais crimes de opinião previstos na legislação em geral, que não disponha de modo diverso.

Não se deve, do mesmo modo, confundir opinião do comunicador com a imputação de fatos. Uma coisa é criticar e narrar fatos, outra muito diferente é ofender a honra (objetiva ou subjetiva) alheia, induzir ou instigar à prática de crime.

No caso de crime contra a honra, necessário o dolo de ofender e quanto a crimes contra o estado democrático, além de violência ou grave ameaça para a maioria dos seus tipos, notadamente os que interessam (arts. 359- L e 359-M), é exigido o dolo de pretender a ruptura institucional e que a conduta perpetrada tenha este potencial (crime de perigo abstrato).

Crítica, por mais veemente que seja, não deixa de ser crítica. Todos podem ser criticados, inclusive os mais altos funcionários de todos os Poderes e os próprios Poderes. Aliás, as pessoas públicas ou notórias têm reduzido seu direito à imagem, intimidade e mesmo à honra, justamente por terem escolhido sua profissão ou função. É certo que permanecem com esses direitos, mas são muito mais suscetíveis a investidas contra eles.

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Para se punir o Órgão de Comunicação deve ter ele abusado de sua condição de pessoa jurídica de forma dolosa e aderido à vontade ou mesmo incentivado seus funcionários a assim agirem, isso se houve efetivo abuso. No caso de ter havido excesso pelos comunicadores, que ultrapassaram o direito de livremente se expressarem ou de exercício de sua profissão, certamente podem ser atingidos e punidos pelo direito penal, civil e administrativo (no caso de agentes públicos). O que não se faz possível é a punição por responsabilidade objetiva do Órgão de Comunicação.

A Lei nº 4.117/1962, profundamente alterada em 1.967, no regime militar, deve ser interpretada de acordo com as normas atuais da CF e não o contrário. Muitas de suas regras não foram recepcionadas pela CF, por sua origem e conteúdo, criada justamente para amordaçar a imprensa livre e limitar a manifestação do pensamento, direitos estes que sempre são os primeiros a serem atingidos quando é implantada uma ditadura, seja de que ideologia for.

O direito à imprensa livre é um dos pilares da democracia. É impensado no atual sistema constitucional cassar a concessão de uma emissora de rádio (ou de televisão) por simplesmente permitir que seus comunicadores comentem fatos e apresentem sua opinião sobre determinado tema, amparados pela livre manifestação do pensamento e direito de expor suas ideias e crítica aos poderes constituídos e a seus integrantes.

Se houve abuso pelos comunicadores, que sejam processados pelo ofendido e, se for o caso, punidos após o devido processo legal. Pergunto: houve a propositura de alguma ação penal pelos ofendidos ou mesmo pelo MPF individualmente contra os jornalistas, comentaristas, repórteres ou proprietários da emissora? Se não, como então querer punir a própria emissora sem antes haver sentença condenatória pela prática de crime ou infração civil (indenização) contra eventuais ofensores ou induzidores à prática de crime (art. 286 do CP)?

Mesmo que se entenda terem sido aqueles dispositivos (arts. 53 e 54 da Lei nº 4.117/1962) recepcionados pela Carta Constitucional, a legislação invocada prevê diversas punições mais amenas para os casos de abuso do direito de comunicação, mais conhecido como direito à liberdade de imprensa.

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Assim, a proporcionalidade implica punição de acordo com a culpabilidade e, no caso de uma empresa, das consequências e gravidade dos fatos concretamente demonstrados.

Partir de plano para um pedido de cassação da concessão da rádio (ou de televisão) sem antes aplicar punições mais brandas, dentro de critério de proporcionalidade, não me parece a medida mais adequada, já que calar um Órgão de Comunicação com quase um século de existência é medida impensada em um estado democrático de direito.

*César Dario Mariano da Silva, procurador de Justiça - MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais - PUC/SP. Especialista em Direito Penal - ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução PenalManual de Direito PenalLei de Drogas ComentadaEstatuto do DesarmamentoProvas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá

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