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STJ reconhece a possibilidade de condomínio residencial proibir locação por plataforma online em razão de desvio de finalidade do imóvel

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Por Maria Flavia Seabra, Vagner de Araújo e Luiza Salles Velloso Rocha Costa
Atualização:
Maria Flavia Seabra, Vagner de Araújo e Luiza Salles Velloso Rocha Costa. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Na última terça-feira, 20/4/2021, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou Recurso Especial que discutia a natureza jurídica de determinados contratos celebrados por meio de plataforma online para uso temporário de quartos em condomínio residencial. O objetivo da discussão era definir se referidos contratos poderiam ser interpretados como locações residenciais ou se, consideradas as características do caso específico, estariam mais próximos de contratos de hospedagem, justificando a imposição de restrições pela administração do condomínio.

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O tema é sensível e com nuances bastante diferentes se compararmos os mais diversos condomínios residenciais. Tal sensibilidade é muito maior para os edifícios antigos, sem infraestrutura de serviços, com custo de manutenção bastante elevado e onde qualquer aumento de gastos pode trazer impacto aos demais condôminos, do que para os empreendimentos de construção recente, projetados para prestação de serviços diária e com custo diluído entre os diversos apartamentos (tais como, portaria 24 horas, medidores de água individualizados para as unidades, áreas comuns com equipamentos diversos, entre outros).

Na falta de regulamentação específica para contratos celebrados por esses meios, a caracterização de um ou outro passou pela avaliação do judiciário em relação a diversos fatores, tais como a prestação de serviços na unidade, a rotatividade de locatários e o período de cada locação.

Entenda o Caso

O caso, de origem no Rio Grande do Sul, envolve a administração de um condomínio que ajuizou ação de obrigação de não fazer contra a locadora de três unidades autônomas de do edifício residencial, com a finalidade de proibir a celebração de locações com alta rotatividade de pessoas e em curtos espaços de tempo.

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Os argumentos do condomínio foram de que a locação praticada pela proprietária, nesse caso concreto: (i) comprometia a segurança dos demais condôminos, tendo em vista a circulação frequente de estranhos na portaria e demais áreas comuns do condomínio e (ii) não se qualificaria como locação por temporada, mas sim atividade econômica de hospedagem, que descaracteriza a finalidade exclusivamente residencial exigida em todos os apartamentos do edifício.

Em que pese o primeiro argumento, relativo à segurança dos condôminos, não ter restado devidamente comprovado nos autos, a fase probatória confirmou que a proprietária oferecia serviços aos hóspedes de seus imóveis, como lavagem de roupas e disponibilização de internet via wi-fi, o que, segundo o condomínio, aproximaria a sua atividade àquela de hospedagem, em detrimento de mera locação residencial por temporada.

Do outro lado da discussão, a proprietária do imóvel argumentou que a restrição pretendida pelo condomínio (i) restringe, de forma indevida, o seu direito de usar, gozar e dispor da coisa como melhor atenda aos seus interesses, na forma do artigo 1.228 do Código Civil, (ii) seria ilegal, posto que a Lei de Locações (Lei 8.245/1991) não impõe período mínimo de estadia no imóvel locado, apenas o período máximo de 90 dias para a locação por temporada, e a atividade de lavagem de roupa seria apenas uma alternativa de renda extra da proprietária, o que não influenciaria na qualificação do contrato como atividade de hospedagem.

Adicionalmente, a plataforma online AirBnB ingressou na lide como assistente simples, como plataforma que intermedeia locações com características semelhantes, aduzindo que (i) a locação por curto espaço de tempo não difere daquela temporalmente estendida, posto que ambas trazem a oportunidade de o locador auferir renda com o seu imóvel sem que isso desnature a utilização da unidade em si, (ii) a análise da destinação de unidades autônomas deve se basear exclusivamente na natureza de sua utilização pelo locatário, e não pela destinação que lhe dá o locador, (iii) o fato de que uma plataforma online facilita a comunicação entre potenciais interessados na celebração de contrato locatício, por sua vez, em nada altera a sua qualificação, (iv) os usuários de aplicativos de locação de imóveis não estão em busca de serviços e estrutura de hotelaria, mas sim da experiência caseira de se hospedar em um ambiente que lhe faça sentir como um local da cidade visitada e (v) os meios de hospedagem pressupõem o caráter de empreendimento ou estabelecimento organizado para o exercício de atividade empresarial e necessária prestação de serviços na estadia do hóspede, os quais não estariam presentes no caso concreto.

A ação foi julgada em favor do condomínio em primeira e segunda instâncias, autorizando a proibição de referidas locações, sendo então levada ao STJ por meio de Recurso Especial interposto pela locadora dos imóveis.

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Interpretação do Colegiado

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O colegiado, por maioria (3x1), negou provimento ao Recurso Especial por entender que o aluguel por meio de plataforma online teria caráter de atividade comercial e não residencial. Tendo em vista que a convenção condominial tinha previsão expressa de que as unidades do empreendimento não poderiam ter finalidade diversa de residencial, a decisão, consequentemente, teve como resultado prático a possibilidade de a locação por aplicativo ser proibida ou restrita pelo condomínio no edifício em questão.

Isso porque o entendimento que prevaleceu, inaugurado pelo Min. Raul Araújo, foi de que se estaria diante de negócio jurídico atípico que se assemelha ao contrato de hospedagem, podendo ser caracterizado como atividade comercial em detrimento de residencial, considerando que os serviços oferecidos pela proprietária não estariam incluídos no rol de direitos e deveres entre locador e locatário previsto na Lei de Locações (Lei 8.245/1991). Além disso, foi reconhecido que o condomínio, sendo residencial, não teria estrutura apropriada para garantir segurança e controle de acesso em situação de grande rotatividade no prédio.

Seguindo nessa linha de raciocínio, o Min. Antônio Carlos Ferreira acrescentou que a controvérsia giraria em torno da extensão dos poderes da convenção de condomínio frente ao exercício do direito de propriedade do titular da unidade autônoma, e não a modalidade de oferta da locação no mercado. Assim, interpretou-se que independe a plataforma pela qual a locação é oferecida, se por aplicativo, jornal ou ainda imobiliária, de modo que o resultado do julgamento não deveria ser rotulado como uma restrição de locação por aplicativo, mas sim como uma interpretação da regularidade do uso dado pela condômina no caso concreto.

Nesse sentido, o voto veio acompanhado da preocupação, externalizada por referido ministro, de que o novo precedente não deveria vincular toda e qualquer locação por meio digital, e sim restrito aos limites das peculiaridades do caso concreto que foi posto em análise. No mesmo sentido, a Min. Isabel Gallotti acrescentou que os aplicativos podem, de fato, aproximar locadores e locatários de um contrato de locação, bem como que não haveria qualquer irregularidade na atividade descrita se fosse realizada em imóvel que estivesse fora de condomínio ou que não tivesse proibição na convenção condominial, o que não foi o caso dos autos.

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Restou vencido o voto do relator Min. Luís Felipe Salomão, que, isoladamente em favor da locadora, frisou que a economia compartilhada, seja com imóveis ou carros, é uma inegável realidade para a qual não se deve fechar os olhos, sendo devidas as atenções necessárias à sua adequada regularização. O relator, ao admitir a regularidade da locação no caso concreto, fez a comparação de que esta relação é fruto de avanços disruptivos da sociedade moderna que são como água: impossível tentar represá-la para evitar que alcance o ponto em que já se encontra.

O voto divergente argumentava, ainda, que se a discussão tiver como foco o fato de a unidade autônoma servir como exploração econômica pela proprietária, qualquer aquisição de imóvel para se investir em aluguéis tornaria a locação necessariamente comercial. O fato de que uma plataforma online facilita a comunicação entre potenciais interessados na celebração de contrato locatício, por sua vez, em nada altera a sua qualificação.

Também ponderou que a legislação brasileira sequer disciplina de forma detalhada o contrato de hospedagem, sendo que o único parâmetro que se tem sobre o assunto é a Lei Geral do Turismo (Lei 11.771/2008), que traz em seu artigo 23 que os meios de hospedagem são empreendimentos ou estabelecimentos destinados a prestar serviços frequentes de alojamento temporário e, em paralelo, serviços necessários à estadia dos usuários, mediante adoção de instrumento contratual e cobrança de diária.

Após amplo debate, o julgamento foi concluído com o acolhimento da tese de que a múltipla e concomitante locação de imóveis ou quartos por curto espaço de tempo e em contrato não regulado por legislação qualificam-se como hospedagem remunerada e, portanto, não são considerados como contratos de locação residencial, podendo ser passível de proibição ou restrição em condomínios restritos à finalidade residencial.

Discussão que não se limita às fronteiras do país

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Não é nenhuma novidade que o aluguel em condomínios residenciais, celebrado por meio de plataformas online ou aplicativos, vem gerando discussões em diversos lugares do mundo. Algumas cidades norte-americanas, por exemplo, já impõem estadia mínima do locatário, que pode variar entre 30 a 180 dias, para hipóteses nas quais o imóvel é totalmente locado para terceiro. Se a locação for de apenas um dos cômodos da casa e contar com a presença do proprietário, que supervisionará os inquilinos, a imposição de prazo mínimo é dispensada em determinados locais.

Na Europa, por sua vez, existem regras em sentido contrário, que impõem prazo máximo da locação, tendo em vista a escassez de imóveis disponíveis para a população. Outras cidades e localidades da Europa, por outro lado, sequer estabelecem qualquer prazo máximo ou mínimo de estadia independente da permanência do proprietário no imóvel.

Isso demonstra que, embora a discussão não seja algo novo ou específico para o mercado brasileiro, a regulamentação desse tipo de contrato dependerá de características socioeconômicas particulares de cada localidade.

Reflexos do julgamento do STJ nas locações por aplicativo 

O julgamento descrito acima certamente será um precedente a ser considerado para esse tipo de locação, mas, como indicado na própria votação do Recurso Especial, não deve ser interpretado como regra geral contra a locação residencial intermediada por plataformas eletrônicas. Isso porque a definição da natureza de cada locação depende de diversos fatores, que podem ser diferentes em cada caso.

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Nesse sentido, a própria divergência consignada no julgamento do Recurso Especial demonstra que a temática não é simples e que pode ser vista por diferentes ângulos diante da falta de regulamentação específica. Conforme comentário da Min. Isabel Gallotti no curso de seu voto, "será necessária intervenção do legislador para transformar esse tipo de contrato que é realidade em contrato típico, dando mais condições de segurança a quem se dedica a esse tipo de negócio que tem, a meu ver, intuito claro de lucro".

Atualmente, tramita perante o Senado Federal o Projeto de Lei 2474/2019, com o intuito de incluir dispositivo específico na Lei de Locações estabelecendo que a locação por meio de plataformas somente deve ser permitida mediante autorização expressa na convenção de condomínio.

A inclusão de um dispositivo específico na legislação certamente diminuiria a necessidade de discussões sobre o tema no judiciário (mas provavelmente não eliminaria completamente, considerando eventual discussão sobre a constitucionalidade dessa legislação); no entanto, ainda que haja proposição legislativa em trâmite, se discute se a solução proposta pelo PL 2474/2019, que é basicamente uma autorização para a restrição pelos condomínios, seria suficiente para atender ao desenvolvimento econômico e à liberdade de uso e gozo da propriedade por cada um. O tema é certamente controverso e admite argumentos para os dois lados.

Ainda que a decisão não tenha caráter de recurso repetitivo, de repercussão geral (caso venha a ser levado ao STF) ou seja aplicável para todos os edifícios residenciais, é inegável que ela traz reflexão e põe luz na importância de um olhar crítico para as normas condominiais e se tais normas refletem exatamente os anseios daquela comunidade, daí a razão para que, se o caso, elas sejam atualizadas para sempre que necessário.

Até a presente data, não temos conhecimento de qualquer recurso ou oposição de embargos à decisão aqui comentada.

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*Maria Flavia Seabra, Vagner de Araújo e Luiza Salles Velloso Rocha Costa são, respectivamente, sócia e advogados da área de Direito Imobiliário do Machado Meyer Advogados

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