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As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

O fundador dos Arautos do Evangelho, o arcebispo, o ufólogo e a impunidade da extrema direita

Nos anos 1960, o Dops surpreendeu grupo, mas liberou jovens, e o STM absolveu ufólogo que espalhou bombas em SP; histórico de falta de punição a extremistas incentiva a ação dos que atacaram a PF

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Por Marcelo Godoy
Atualização:

Caro leitor,

O delegado Ruy Prado de Francischi não fazia ideia do que havia descoberto. Ao investigar o assalto à agência de Perus, do Banco Mercantil e Industrial de São Paulo, ele deteve um policial da Força Pública, o soldado Jesse Cândido de Moraes. Dias antes, um carro-bomba preparado com 28 bananas de dinamite foi aos ares no Largo General Osório, em frente à sede do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, de São Paulo.

Reprodução do laudo pericial da explosão do carro-bomba deixado em frente ao Dops pelo grupo de Dinotos Foto: Reprodução/Arquivo do Estado

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Foi o último atentado de uma série que o grupo realizou na cidade contra quartéis e outros prédios públicos. Jesse revelou quem era seu líder. Tratava-se do ufólogo e místico Aladino Félix, conhecido como Sábado Dinotos. “Seria ele uma mescla de gênio e louco, um visionário, um místico, um paranoico, um mitômano, um profeta ou nada mais do que um grande charlatão? Só um exame psiquiátrico pode revelar essa personalidade”, escreveu o delegado Benedito Sidney de Alcântara, do Dops.

O homem que colaborara com a “causa revolucionária de 31 de março de 1964″, dizia-se escolhido por Jeová para reunificar as 12 tribos de Israel, instalar-se em Jerusalém e governar o mundo. Discorria sobre discos voadores, escrevia livros e convenceu o general de brigada Paulo Trajano da Silva de que tinha informações sobre uma conspiração de políticos de oposição contra o presidente Costa e Silva. Eles desencadeariam uma contrarrevolução com o apoio de generais, como Syzeno Sarmento, então no comando do 1.º Exército.

O general Trajano, que trabalhara com Costa e Silva, levou Dinotos até o diretor-geral da Polícia Federal, o coronel Florimar Campello, e ao general Luís Carlos Reis de Freitas. Também fez chegar um relatório com as denúncias do místico ao presidente. Trajano acabou indiciado pelo Dops porque teria se omitido diante dos planos terroristas de Dinotos – segundo testemunhas, aconselhou o roubo de armas da Força Pública, o que foi feito pelo grupo, quase todo composto de militares estaduais.

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Mais tarde, Dinotos e seus colegas policiais militares foram processados e condenados – exceto o general. Mas por pouco tempo. Em 4 de novembro de 1970, o Superior Tribunal Militar (STM) absolveu todos; exceto o místico, a quem decidiu submeter a exame psiquiátrico. “O general Trajano foi a sua presa mais interessante. Não foi difícil convencê-lo de que o governo de seu amigo corria sérios perigos. Engajou-se o general no movimento de contragolpe preparado pelo visionário”, dizia a decisão unânime assinada por 14 ministros, entre eles o brigadeiro Armando Perdigão, presidente da Corte.

Para os ministros, tudo era culpa da influência do “mago”. “Tudo o que fizeram – e não foi tanto assim – é fruto de fanatismo cego, de cega obediência a um mistificador, alucinado e ambicioso que os convenceu e ao general Trajano, que estavam lutando pelo governo para destruir uma conspirata destinada a derrubar o presidente Costa e Silva.” Assim está escrito no acórdão. Os réus eram vítimas de Dinotos. As bombas, o furto de armas e todos os demais crimes ficaram impunes.

O documento secreto do Dops sobre a detenção dos 46 jovens que faziam treinamento militar na zona leste Foto: Reprodução/Arquivo do Estado

Em outro caso envolvendo extremistas, o Dops nem se deu ao trabalho de abrir inquérito ou efetuar prisões. Um documento secreto de duas páginas é a única prova que resta da detenção de um grupo de jovens armados em meio ao treinamento militar para a formação de uma milícia, em 15 de dezembro de 1969. Com o título de “treinamento antiguerrilha”, o papel diz que, por volta das 5 horas, 46 jovens haviam sido detidos pelo Dops na Rua Sábato D’Ângelo, em Itaquera, na zona leste.

“Neste Dops ficou esclarecido que os jovens pertenciam à Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição Família e Propriedade (TFP)”, diz o documento. Foram apreendidos revólveres, uma carabina de pressão e boa quantidade de munição. “Na área de treinamento verificou-se que havia vestígios de rastejamento e simulação de combate.” Solicitou-se perícia para o local. O delegado listou os nomes dos jovens detidos – todos liberados no mesmo dia pela autoridade de plantão. O primeiro era João Scognamiglio Clá Dias e o último, Aldo de Cillo Pagotto.

Décadas mais tarde, Clá Dias deixaria a TFP e fundaria os Arautos do Evangelho, sociedade hoje presente em 78 países com suas vestes militares medievais. Superior-geral da entidade, monsenhor Clá renunciou ao cargo em 2017 em meio a rumores de investigações do Vaticano sobre práticas de exorcismo fora das fórmulas da Igreja e promoção de cultos particulares de devoção a Plínio Corrêa de Oliveira, fundador da TFP, à mãe dele, Dona Lucília, e ao próprio monsenhor Clá.

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Pagotto seria ordenado padre em 1977 e se tornaria arcebispo da Paraíba em 2004. Doze anos depois, ele apresentou sua renúncia ao ser acusado de acobertar casos de pedofilia, acolhendo em sua arquidiocese seminaristas afastados de outras dioceses, supostamente pela prática de abusos. Conservador, Pagotto foi o primeiro arcebispo brasileiro a deixar o cargo, após uma investigação de pedofilia feita pelo Vaticano.

Dom Aldo Pagotto, arcebispo afastado da Paraíba, durante a 48.ª Assembleia Geral dos Bispos do Brasil Foto: PABLO VALADARES/AE

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Nem ele nem monsenhor Clá precisaram se preocupar com o que o Dops descobrira em 1969. Eles nunca foram confrontados com suspeitas em razão daquele treinamento com armas. Naquele tempo, tudo parecia de ponta cabeça. O conselho de sentença que condenara Dinotos antes da absolvição do STM escrevera que os réus “agiram como ativistas políticos praticando atos de terrorismo”. E afirmou: “Não importa se o terrorismo é de ‘direita’ ou de ‘esquerda’, se ‘contra’ ou ‘a favor’ do governo.”

Os magistrados explicaram por quê. “Admitir que um grupo isolado de pessoas, conduzidas por um ‘iluminado’ quebre todas as regras de hierarquia e disciplina da corporação militar a que pertencem e da própria estrutura do Estado de direito para defenderem o regime e o governo de uma ameaça que não chegou sequer a ser comprovada como tal é admitir o caos.”

É o caos que se planta no País e nos quartéis quando o misticismo, o messianismo e o salvacionismo se tornam desculpas para a prática de crimes. No passado, extremistas de direita formaram milícias e cometeram atos terroristas. Não foram punidos. Na abertura do regime militar, ressurgiram com suas bombas em uma escalada que levou ao Riocentro. Tudo diante da leniência de quem devia colocá-los na cadeia. Hoje, o veneno da impunidade mais uma vez ameaça o País. Contra ele, não há remédio diferente do usado na Alemanha contra os golpistas que ameaçaram a ordem pública.

No longínquo ano de 1969, a sentença da 2.ª Auditoria da Justiça Militar contra o grupo de Dinotos concluía que “a segurança nacional estaria gravemente perturbada pela admissão ou a impunidade de tais comportamentos”. Assinavam o documento três juízes militares e um auditor. Entre eles estavam os capitães Orestes Raphael Rocha Cavalcanti e Carlos Sérgio Maia Mondaini. Dois anos depois, o caos daqueles dias faria eles se tornarem o Doutor Terebentino e o Doutor José, respectivamente, do Destacamento de Operações de Informações, do 2.º Exército (DOI /II Ex).

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Cenário de guerra: bolsonaristas queimam carros e tentam invadir sede da PF 

Nos dias atuais, a polícia não conseguia prender o pastor Fabiano Oliveira, de 44 anos, apesar da ordem do Supremo Tribunal Federal (STF). Não havia como retirá-lo no meio da multidão diante do 38.º Batalhão de Infantaria Blindada (38.º BIB), em Vila Velha (ES). O pastor lidera o grupo Soberanos da Pátria e prega a intervenção do Exército contra a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em vez de dispersar os acampados, as autoridades apenas observaram, acertadamente, até conseguir detê-lo nesta segunda-feira, dia 19.

Como em 1969, os agentes do Estado não podem escolher se a lei deve ou não ser cumprida. Os doutores Terebentino e José aprenderam a lição. Em pouco tempo estavam trabalhando no DOI/II Ex com o Doutor Flávio, o capitão Freddie Perdigão Pereira, um dos extremistas que se dedicavam a espalhar bombas para explodir a ordem e manter o arbítrio. O caos torna tudo indistinto; juízes e terroristas, padres e charlatães, democracia e ditadura. Leniência e repressão desmedidas são formas de produzir mais desordem. Ninguém sabe qual delas vem primeiro. Mas todos conhecem as suas consequências.