Uso da Lei de Segurança Nacional contra críticos de Bolsonaro desgasta imagem de Mendonça no STF

Mesmo assim, advogado-geral da União é um dos favoritos para ocupar vaga na Corte com saída do decano Marco Aurélio Mello

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BRASÍLIA - A estratégia do Palácio do Planalto de recorrer à Lei de Segurança Nacional (LSN) como instrumento para reprimir opiniões negativas e ácidas contra o governo do presidente Jair Bolsonaro provocou desgastes à imagem do advogado-geral da União, André Mendonça, no Supremo Tribunal Federal (STF). Criticada por integrantes da Corte, a legislação é alvo de quatro ações que tramitam no tribunal. Mendonça deixou o comando do Ministério da Justiça nesta semana e é um dos nomes favoritos para a vaga que será aberta em julho no Supremo, com a aposentadoria compulsória do decano, ministro Marco Aurélio Mello.

Bolsonaro já disse, em mais de uma ocasião, que pretende indicar para a Corte um ministro “terrivelmente evangélico”. Mendonça é evangélico e, entre os principais cotados, atrai mais apoio do que o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins, e o ministro João Otávio de Noronha, por exemplo. Mas o procurador-geral da República, Augusto Aras, também está nessa disputa. O perfil técnico do ministro da Justiça, que fez carreira como servidor na Advocacia-Geral da União (AGU), agrada aos magistrados.

AndréMendonça, no Plenário do STF em junho de 2019, quando o ministro chefiava a Advocacia-Geral da União Foto: GABRIELA BILÓ / ESTADÃO

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Integrantes do Supremo ouvidos sob reserva pelo Estadão têm desaprovado, porém, a forte ofensiva do governo contra críticos de Bolsonaro, como o uso da Lei de Segurança Nacional. Recentemente, Mendonça também se valeu do Código Penal para tentar enquadrar como crime contra a honra os autores de outdoors que divulgaram, em Tocantins, a mensagem de que Bolsonaro “não vale um pequi roído” e que “Palmas quer impeachment já”. O Ministério Público Federal pediu o arquivamento do caso, que tramita na Justiça Federal do DF.

Em agosto do ano passado, ainda quando era ministro da Justiça, Mendonça também foi levado para o centro de outra polêmica, envolvendo a elaboração de um dossiê contra servidores antifascistas durante sua gestão. Naquela ocasião, por 9 a 1, o plenário do Supremo decidiu suspender todo e qualquer ato do Ministério da Justiça de produção ou compartilhamento de informações sobre cidadãos que se intitulam antifascistas.

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Nenhum dos ministros, no entanto, votou pela abertura de uma investigação para apurar a conduta do então titular da Justiça. “Nós não podemos fazer injustiças com pessoas que dedicam a vida pública ao Estado brasileiro”, afirmou Dias Toffoli, que à época era presidente do STF.

O Ministério da Justiça é uma das áreas mais sensíveis aos interesses de Bolsonaro. O presidente é alvo de um inquérito aberto para investigar suspeitas de interferência indevida na Polícia Federal. As acusações foram apresentadas pelo então titular da pasta Sérgio Moro em 24 de abril do ano passado, dia em que ele deixou o cargo. 

Após a saída de Moro do governo, ministros do Supremo se manifestaram a favor da escolha de Mendonça para substituí-lo. Luís Roberto Barroso e Ricardo Lewandowski, expoentes de alas opostas dentro da Corte, se uniram em elogios ao auxiliar do presidente.

Genocídio

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O desgaste na imagem do atual chefe da Advocacia-Geral da União veio com o uso recorrente da Lei de Segurança Nacional. Aplicada por Mendonça e pela Polícia Federal, essa legislação se tornou alvo de ações apresentadas no Supremo por partidos de diferentes matizes ideológicos, como PTB, PSDB, PSB, PT, PSOL e PC do B, que desejam a derrubada, total ou parcial, do texto herdado da ditadura militar.

O relator desses processos é o ministro Gilmar Mendes, que entrou na mira do governo após dizer, em julho do ano passado, que o Exército está se “associando a esse genocídio”, em uma crítica à atuação do governo no enfrentamento da pandemia de covid-19.

A declaração de Gilmar provocou uma crise com o Ministério da Defesa, que entrou com representação contra ele na Procuradoria-Geral da República (PGR). A Defesa também recorreu a um dispositivo da Lei de Segurança Nacional, que prevê pena de até quatro anos de prisão para quem incitar “à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis”. Segundo o Estadão apurou, o caso acabou arquivado pelo Supremo.

Ministros da Corte avaliam que a LSN precisa, sim, de ajustes e de ser interpretada à luz da nova realidade do País – democrática, e não mais ditatorial. Observam, porém, que a edição de um novo texto, para substituir o atual, cabe ao Congresso.

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“Não se julga a partir de um ranço. Evidentemente nesse regime (militar), houve a prática de atos positivos e negativos, e apenas estes últimos merecem glosa (supressão). Não me pronuncio ainda sobre o fundo da questão”, disse Marco Aurélio ao Estadão.

Fóssil normativo

Em uma transmissão ao vivo pelas redes sociais, no dia 20 de março, Lewandowski afirmou que o tribunal tem um “encontro marcado” com o tema. “O Supremo precisa dizer se esse fóssil normativo é ainda compatível, não só com a letra da Constituição de 1988, mas com o espírito da mesma”, argumentou Lewandowski.

Em maio de 2016, o plenário do Supremo anulou a condenação de um homem que havia sido enquadrado na Lei de Segurança Nacional por ter sido preso com duas granadas de uso exclusivo do Exército. Por unanimidade, o STF entendeu que o crime não tinha motivação política – a intenção do réu seria roubar um banco.

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“Já passou da hora de nós superarmos a Lei de Segurança Nacional, que é de 1983, do tempo da Guerra Fria, que tem um conjunto de preceitos inclusive incompatíveis com a ordem democrática brasileira”, disse Barroso na ocasião. “Há no Congresso, apresentada de longa data, uma nova lei, a Lei de Defesa do Estado Democrático e das Instituições, que a substitui de maneira apropriada. Portanto (digo isso), apenas para não parecer que estamos cogitando aplicar a Lei de Segurança Nacional num mundo que já não comporta mais parte da filosofia abrigada nessa lei, que era do tempo da Guerra Fria e de um certo tratamento da oposição como adversários”, completou o magistrado.

Em diferentes casos, porém, a Lei de Segurança Nacional já foi utilizada não só pelo governo Bolsonaro, mas pelo próprio STF. A legislação serviu, por exemplo, para fundamentar a prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ), após o parlamentar gravar um vídeo com ameaças e insultos a ministros do STF e fazer apologia ao Ato Institucional número 5 (AI-5), o instrumento mais duro de repressão do governo militar. Silveira foi preso no âmbito do inquérito das ameaças, ofensas e fake news contra integrantes da Corte.

A LSN também foi usada para fechar o cerco à militância digital bolsonarista em outro inquérito que atormenta o Planalto: o dos atos antidemocráticos. “Qualquer atentado à democracia afronta a Constituição e a Lei de Segurança Nacional”, escreveu Augusto Aras, ao solicitar a abertura de investigação sobre a organização e o financiamento das manifestações que pediam intervenção militar e o fechamento do Congresso e do STF.

A lei serviu, ainda, para a Polícia Civil do Rio intimar o youtuber Felipe Neto (após o influenciador digital chamar Bolsonaro de “genocida”) e para o Ministério da Justiça pedir a investigação da publicação de uma charge na qual Bolsonaro aparece transformando a cruz vermelha (símbolo de hospitais) na suástica nazista. O Ministério da Justiça também solicitou abertura de inquérito contra o colunista Hélio Schwartsman por ele ter escrito artigo no jornal Folha de S.Paulo intitulado“Por que torço para que Bolsonaro morra”.

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Régua

Segundo interlocutores de Bolsonaro, é importante que o Supremo se manifeste sobre a validade da Lei de Segurança Nacional e garanta segurança jurídica. Aliados do presidente, no entanto, destacam que o tribunal deve criar “uma régua”, que valha não apenas para o uso que o governo faz da LSN, mas que sirva para o próprio STF. Na avaliação do governo, não há uso excessivo da legislação.

O número de procedimentos abertos pela Polícia Federal para apurar supostos delitos contra a segurança nacional, no entanto, aumentou 285% nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, quando se compara o mesmo período das gestões Dilma Rousseff e Michel Temer, conforme informou o Estadão. Entre 2015 e 2016 houve um total de 20 inquéritos. Na primeira metade da administração Bolsonaro, o número saltou para 77 investigações.

“Uma lei de segurança nacional pretende proteger as instituições, e não as pessoas investidas nos cargos públicos. O que afronta a segurança nacional não é ofender o presidente da República ou o ministro do STF ou um deputado federal. O que atenta é se manifestar de forma hostil à própria instituição”, disse o advogado Fábio Tofic, mestre em Direito Penal pela USP e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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Para Tofic, o governo Bolsonaro tem usado contra opositores um dispositivo da lei que viola a Constituição – o artigo 26, que prevê pena de até quatro anos de prisão para quem “caluniar ou difamar” o presidente da República.

“O governo não se incomoda com aqueles que atacam as instituições, mas se incomoda quando a pessoa do presidente da República é ofendida. É uma interpretação ainda do regime autoritário, uma leitura tirânica, que pede para banir ofensas contra o presidente, mas não contra quem prega contra o Supremo e o Congresso e louva o golpe de 1964”, afirmou o advogado.

Procurados pelo Estadão, o Palácio do Planalto, a AGU e o Ministério da Justiça não se manifestaram.

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