RIO – “Em nome da moral e bons costumes esta lei surgiu. Nove mil duzentos e quinze. Fechando os cassinos no Brasil. É proibido jogar, jogar, jogos de azar.” O samba-enredo da Império da Tijuca, em 1984, dava o tom de como bicheiros e contraventores do Rio de Janeiro se empenhariam em derrubar a proibição aos cassinos imposta pelo general Eurico Gaspar Dutra, em 1946. Os patronos do carnaval carioca investiram no lobby, se aproximaram de deputados e, no início da década de 1990, ganharam um aliado de peso nas tratativas: o empresário norte-americano Donald Trump demonstrou interesse em explorar o setor com o apoio do governo Fernando Collor.
O projeto de lei que conseguiu angariar o maior apoio dos congressistas foi apresentado em março de 1991 pelo deputado Renato Vianna (PMDB-SC). Antes, outros chegaram a ser protocolados, mas não foram adiante. A proposta começou tímida. Apenas cassinos seriam permitidos. Para os bicheiros, no entanto, era apenas uma questão de tempo até que o jogo do bicho fosse incluído, como festejou José Petrus, considerado à época o porta-voz dos contraventores do Rio de Janeiro.
“Isso é um passo para a legalização do jogo do bicho”, afirmou Petrus ao Estadão, em maio de 1991.
Em maio daquele ano, o governo federal decidiu apoiar publicamente o projeto de reabertura dos cassinos. Com o aval do presidente e o entusiasmo de deputados que chegavam a organizar excursões para Aruba, no Caribe, para apostar livremente, a proposta ganhou tração no Congresso.
A questão que ainda pairava era se o jogo do bicho seria incluído no decorrer da tramitação ou se o projeto ficaria restrito aos cassinos. O então deputado José Dirceu apoiava a liberação do bicho. ”José Dirceu (PT-SP) esclarece que o partido é favorável à liberação do jogo do bicho, mas faz ressalvas aos cassinos”, registrou o Estadão à época.
A ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, foi a escolhida por Collor para anunciar o apoio do governo ao projeto dos cassinos. Um dos pontos que ainda gerava divergências entre os parlamentares era a possibilidade de investimento estrangeiro. Os deputados Israel Pinheiro Filho (PRS-MG) e Luiz Carlos Festugatto (PFL-RS) propuseram que a exploração das casas de jogos fosse feita apenas por empresas nacionais.
“Se o negócio for entregue a estrangeiros, tudo poderá virar monopólio nas mãos, por exemplo, de um Donald Trump”, afirmou Festugatto, em 1991.
Esse era justamente o ponto que o governo federal não negociaria. Zélia e Collor estavam convencidos de que os cassinos deveriam receber investimento multinacional, entre eles, de Donald Trump. O interesse de Trump em empreender no ramo dos jogos de azar no País também foi registrado pelo jornal O Globo, em maio de 1991.
Leia também
A ministra da Economia sugeriu uma emenda ao projeto de lei do deputado Renato Vianna para a abertura para o capital estrangeiro. “De acordo com a ministra, não há razão para se impedir a entrada no Brasil de investidores como Donald Trump, que já manifestou o interesse de abrir cassinos no País”, registrou o jornal.
“O Sr. Donald Trump demonstrou não se sabe quando a intenção de aplicar dinheiro nos cassinos. Amargando os prejuízos que dizem ter tido em suas casas de jogo, o milionário norte-americano parece disposto a ajudar a balança de pagamentos e a Receita Federal brasileiras. Os argumentos em favor da legalização do jogo – e o bicho, será discriminado? – são parte da conversa dos que não conseguiram desligar-se do Brasil velho”, destacou um artigo do Estadão, intitulado “O imbatível Brasil velho”, no dia 8 de maio de 1991.
Jogo do bicho é incluído na discussão
Como previa o porta-voz dos contraventores carioca, o jogo do bicho foi incluído na proposta inicial apresentada em 1991. Em setembro de 1993, um projeto do deputado Paulo de Almeida (PTB-RJ), presidente de honra da escola de samba Unidos da Ponte, sobre a autorização para a exploração do jogo do bicho foi apensada ao projeto de lei. Sem emendas apresentadas, o relator deu um parecer favorável ao texto, aprovado de maneira unânime pelos outros deputados pertencentes à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, em novembro de 1993.
Em 1993, Paulo de Almeida visitou os contraventores Capitão Guimarães, Paulinho de Andrade e Zinho e voltou a defender a legalização do jogo do bicho, como registrou o Estadão no dia 19 de maio aquele ano.
“Essa hipocrisia tem que acabar. O jogo do bicho existe e todos sabem disso. Em 1991, fiz o projeto para a legalização do jogo, que é do agrado de todos os banqueiros e até do ministro da Justiça, Maurício Corrêa. Atualmente, o projeto tramita na CCJ da Câmara”, afirmou Almeida ao Globo, em 1993.
O projeto, apesar dos esforços dos contraventores e do próprio governo, ficou paralisado. Em 1994, uma comissão chegou a ser criada para reunir todas as propostas sobre jogos de azar em tramitação, mas não recebeu o apoio necessário. O assunto ficou adormecido até 2015, quando o tema voltou à pauta do Congresso.
Proposta volta à pauta do Congresso após três décadas
Três décadas depois do início da discussão sobre a reabertura dos cassinos, o projeto de lei proposto em 1991 voltou à pauta do Congresso. Desde então, sofreu diversas alterações, expandindo-se para o que hoje é chamado de “Marco Regulatório dos Jogos no Brasil”. Após aprovação na Câmara em 2022, a proposta chegou ao Senado e, se aprovada, pode seguir para sanção ou veto presidencial.
O Senado pretendia votar ainda nesta reta final de 2024 o projeto de lei dos cassinos, que tem como proposta legalizar diversas modalidades de jogos de azar, incluindo bingos, apostas em cavalos e cassinos, além de regulamentar o jogo do bicho. Sem um consenso entre os líderes de bancada, a análise do projeto foi adiada. O julgamento deverá ser retomado no próximo ano.
A regulamentação das bets – cassinos online – fortaleceu os argumentos dos defensores dos cassinos e dos demais jogos de azar. O impacto de questões relacionadas ao endividamento da população e ao uso irregular para lavagem de dinheiro estão em debate, mas o apoio, que começou a ser costurado durante o governo Jair Bolsonaro e ganhou força no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, possui respaldo significativo nas duas Casas, Câmara e Senado.