Saque na Rua Santa Ifigênia: o que a polícia sabe sobre arrastões a comércios no centro de SP

Nos últimos meses aumentou o número de casos de repercussão de ataques a lojas, farmácias e até episódios mais explícitos de violência, como a depredação de um ônibus

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Por Ítalo Lo Re
Atualização:
Correção:

Um novo saque envolvendo usuários de drogas da Cracolândia, aglomeração de dependentes químicos que há três décadas ocupa ruas no centro de São Paulo, voltou a chamar atenção para a insegurança na região. Desta vez, o alvo foi uma loja de câmeras na Rua Santa Ifigênia. A invasão, que ocorreu na manhã do último dia 27, gerou um prejuízo de cerca de R$ 300 mil, estimaram os donos.

Esse não é o primeiro episódio desse tipo na região de Santa Ifigênia, que concentrou a maior parte dos 11 endereços ocupados pela Cracolândia no ano passado, como mostrou levantamento do Estadão. Nos últimos meses, foram saques a lojas, farmácias e até episódios mais explícitos de violência, como a depredação de um ônibus e o ataque a pedras ao Bar Brahma, um dos mais tradicionais da cidade.

Saque a uma loja de câmeras de segurança na Rua Santa Ifigênia voltou a jogar luz sobre a falta de segurança no centro da capital Foto: Taba Benedicto/Estadão

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Diante de casos assim, as polícias Militar e Civil têm se mobilizado para combater a criminalidade no centro. Na semana passada, por exemplo, foi inaugurada uma nova base da PM a poucas quadras da Rua dos Protestantes, onde hoje fica a Cracolândia. A insegurança na região tornou-se um problema central para o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o prefeito Ricardo Nunes (MDB), pré-candidato à reeleição.

“Grande parte dos crimes patrimoniais praticados no centro de São Paulo estão intimamente ligados à Cracolândia”, disse em entrevista ao Estadão o delegado Jair Ortiz, responsável por coordenar as ações da Polícia Civil no centro de São Paulo.

Há um ano no cargo, ele diz ser importante não generalizar os integrantes do fluxo como criminosos, uma vez que trata-se de um problema de saúde pública, mas afirma que, ao mesmo tempo, a aglomeração serve como uma espécie de “esconderijo” para quem comete crimes por lá.

E as formas de agir são variadas. No caso de episódios como o ocorrido na loja de câmeras, por exemplo, Ortiz descarta que eles são encabeçados por grupos focados só em saques a comércio, que chegaram até a ser apelidados informalmente de “gangues da portinhola”.

“Quando se fala em gangue ou em associação, dá a impressão de que é um grupo estabilizado, que faz determinado tipo de coisa. Nesse caso, não tem estabilidade alguma”, disse o delegado. “É um caso mais de oportunidade.”

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Ele afirma que investigações da Polícia Civil indicam que se trata de uma dinâmica diferente, por exemplo, das adotadas por gangues de bicicleta, que normalmente agem em grupos em bairros como a República. Ainda com essa diferenciação, o delegado reforça a gravidade do episódio e a necessidade de se adotar novas medidas em diferentes frentes para tornar a região mais segura.

Como mostrou o Estadão, um dos reflexos da escalada da violência no centro é o impacto no comércio. A Rua Santa Ifigênia, onde ocorreu o último saque, enfrenta crise marcada pela perda de clientes e fechamento de lojas.

Hoje são dois mil estabelecimentos em funcionamento, conforme a União dos Lojistas da Santa Ifigênia. Há dez anos, eram cerca de 15 mil. “É assustador você chegar para trabalhar e ver coisas quebradas, roupas, cachimbos, chinelos, tênis”, disse uma trabalhadora da região.

Diante desse cenário, uma das apostas da gestão Tarcísio é contratar PMs da reserva para, com isso, conseguir liberar policiais da ativa para que possam ser direcionados para atividade de policiamento nas ruas.

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“A ideia é ser uma medida permanente. O número em si depende do processo legislativo, mas os primeiros estudos estavam (prevendo) em torno de 5 mil policiais”, disse o major Rodrigo Vilardi, da Coordenadoria de Análise e Planejamento da Secretaria da Segurança Pública (SSP).

Aposta é aumentar o uso de câmeras

No lado da Polícia Civil, a principal aposta é aumentar o uso de câmeras em investigações, medida que ocorre em paralelo às críticas feitas pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, em relação à efetividade das câmeras corporais usadas por policiais militares, já atestada por diferentes estudos.

Conforme Ortiz, a ideia é contar com cerca de 500 câmeras só na região central, em especial na Cracolândia. Ainda não há detalhes se seriam todas do Muralha Paulista, programa que é considerado um dos carro-chefes do governo para a segurança, ou se também serão usadas câmeras da prefeitura e de entes privados.

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O objetivo da Polícia Civil, de todo modo, é ampliar o uso de câmeras para a produção de provas contra pessoas envolvidas em crimes como roubos e furtos. Além de focar em gangues da bicicleta e de “quebra-vidro” e no tráfico de drogas, em especial na região da Cracolândia.

Ao longo dos últimos anos, as investigações conduzidas única e exclusivamente com base em reconhecimento pessoal têm sido alvo de críticas no Judiciário, com frequentes discussões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para criar mecanismos para evitar a condenação de inocentes.

Ortiz afirma, no entanto, que a ideia não é usar somente a imagem nas investigações. “É preciso que haja outros elementos probatórios, a combinar com essa imagem, para dizer efetivamente que ‘este é o sujeito que nós identificamos’”, disse o delegado.

A aposta nas câmeras não é exatamente nova. Essa era uma das bandeiras já levantadas quando Ortiz assumiu a 1.ª Seccional, em 9 de janeiro do ano passado, mas não avançou tão rápido: as mudanças defendidas pelo delegado começaram a ser empregadas de forma mais expressiva somente a partir de abril. “Foi o mês em que nós, da Polícia Civil, começamos processos novos”, disse.

O delegado defende que esse foi um dos fatores centrais para que tenha havido queda nos roubos na região central – só no 3.º Distrito Policial, os registros desse tipo de crime caíram 14,2%: foram de 7.226 para 6.199. A redução, porém, segue tendência observada em toda a cidade de São Paulo. Por outro lado, como mostrou o Estadão, os furtos estão em alta na capital paulista.

No período recente, a insegurança na região central tem sido alvo de queixas constantes entre moradores e comerciantes. Um dos episódios que chamou a atenção para o tema foi um ataque a pedras direcionado ao Bar Brahma, localizado na famosa esquina das avenidas Ipiranga e São João.

O episódio, como mostrou o Estadão, criou até um movimento de empresários para instalar câmeras de segurança particulares, por conta própria, e promover mais atividades culturais como contraposição à violência.

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Combate ao tráfico de drogas no centro

Conforme Ortiz, um dos focos da gestão para o ano é tentar combater o tráfico de drogas no centro, com ações montadas inclusive para desmantelar o “tráfico formiguinha”, quando operários do crime organizado transportam pequenas quantidades de drogas.

“Os usuários e os traficantes aprenderam, ou procuraram entender, como trabalham os órgãos policiais. É de conhecimento notório entre eles que as pequenas quantidades de entorpecentes não levam à prisão”, disse.

A intensificação do uso de imagens, segundo Ortiz, tem o objetivo de comprovar a recorrência dessas movimentações. “É uma forma de provar que um sujeito que foi encontrado com 20 pedras se dirigindo ao fluxo ou até entrando no fluxo não é um mero usuário de entorpecentes, mas, sim, um traficante”, disse.

Na prática, a nova tática usada pela Polícia Civil, afirma o delegado, continua a individualizar as condutas, mas amplia o conhecimento sobre o que aquela pessoa está fazendo para além do momento do flagrante.

“Essa prova não é simples, não é fácil de fazer, mas é possível fazê-la. E é com isso que nós viemos trabalhando ao longo dos últimos meses, de modo que nós já conseguimos uma quantidade bastante significativa de prisões dentro dessa modalidade”, disse. “A Justiça tem entendido que é pertinente que se pense assim, e nós temos conseguido provas.”

A Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirmou que, em balanço divulgado no último mês, o Estado está promovendo a ampliação tecnológica na área da segurança pública para fortalecer o programa Muralha Paulista no combate ao crime organizado.

A pasta acrescentou ainda que, por meio de convênios firmados no período recente, interligou as câmeras do Estado, de municípios e da polícia em um único sistema.

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“Até o momento, mais de 8 mil câmeras estão ativas no Estado. No ano de 2023, a tecnologia contribuiu para a detenção de 743 infratores e na recuperação de 8 mil veículos pelas forças de segurança. Além disso, o programa facilitou a retirada de circulação de 99 armas ilegais até dezembro”, disse.

A secretaria reforçou que o Muralha Paulista também consolidou neste ano o monitoramento em grandes eventos, com a recaptura de 38 procurados pela Justiça. Em um dos casos, a polícia deteve dez procurados durante o Grande Prêmio de São Paulo de Fórmula 1, como mostrou o Estadão na época.

PCC na mira

A Polícia Civil prevê ainda intensificar as investigações de nomes do alto escalão que comanda o tráfico na região, com destaque para o Primeiro Comando da Capital (PCC). “Essa é a parte mais importante no processo”, disse o delegado Jair Ortiz.

“Nós estamos trabalhando para desbaratar quadrilhas que estão no topo da cadeia alimentar. Neste ano (2023) nós conseguimos a prisão de um sujeito que era o chefe de todo o tráfico no centro de São Paulo”, acrescentou.

A prisão citada por ele foi de Mardel Vidal da Silva, capturado em julho do ano passado com 1,5 kg de crack e apontado pela Polícia Civil como o principal fornecedor da droga do centro de São Paulo.

“Ele estava sendo investigado por várias polícias, não só pela polícia do centro de São Paulo, a 1.ª Seccional, mas estava com uma investigação em andamento no Ministério Público do Estado e da polícia do Mato Grosso”, disse. “É considerado membro do PCC de um nível importante.”

Questionado sobre o monopólio do Primeiro Comando da Capital sobre o tráfico de drogas na região, o delegado minimiza. “É um fato que existe a atuação do PCC, mas existe também uma espécie de grife, entre aspas, a que se convencionou chamar de PCC”, disse. “Não é raro encontrar qualquer ‘pé de chinelo’, que não é nada no universo do crime, que se intitula membro do PCC porque encontra nisso algum tipo de benefício.”

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Ortiz reconhece, ainda assim, que o avanço da K9 e de outras drogas sintéticas é motivo de preocupação: revelam uma maior sofisticação das facções criminosas. Recentemente, um laboratório para produção dessa droga foi fechado na região do Pacaembu, na zona oeste de São Paulo. “A gente começa a observar que, lamentavelmente, os narcotraficantes têm encontrado meios de produzir drogas sintéticas de forma cada vez mais efetiva.”

Correções

A foto original que ilustrava esta matéria mostrava a Andra Materiais Elétricos de portas abaixadas. A assessoria da loja informa que o estabelecimento estava em reforma e esclarece que as lojas da região continuam em funcionamento. A imagem foi substituída.

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