Novo guia ajuda profissionais de saúde a atender pacientes negros

Material lançado por Dasa dá atenção especial à saúde mental, já que o risco de depressão é significativamente maior entre a população negra

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Por André Bernardo

No dia 2 de setembro de 2020, o violoncelista Luiz Carlos Justino, de 26 anos, saiu de casa em São Francisco para tocar na estação das barcas, no centro de Niterói, na região metropolitana do Rio. No caminho de casa, por volta das sete da noite, foi abordado por policiais e, como estava sem documento, encaminhado para a 76ª DP. Lá, o delegado descobriu que havia um mandado de prisão por um suposto assalto à mão armada, em 2017. No mesmo dia e horário, porém, Luiz Carlos tocava com o tio, Leandro Justino, e um primo, Ricardo Vidal, em uma padaria em Piratininga, a 7 quilômetros de distância.

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Preso por um crime que não cometeu, foi levado para dois presídios, onde ficou por quatro dias, até ser solto no dia 6, por decisão da Justiça. “Me senti jogado, num lugar insalubre, onde servem comida estragada”, recorda o músico. “Aquilo não recupera ninguém”.

No dia 22 de agosto de 2022, Luiz Carlos voltava para casa, depois de jogar bola com outros integrantes da Orquestra da Grota, onde toca desde os 6 anos de idade, quando foi detido pela polícia numa blitz, em Charitas. Como seu nome, quase dois anos depois, ainda constava no cadastro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foi levado para a 79ª DP para prestar esclarecimento. Na delegacia, o rapaz ficou incomunicável e sem direito a telefonema. Meia hora depois, constatada a falha no sistema, foi liberado.

“Até hoje, tenho dificuldade para sair de casa sozinho e preciso de acompanhamento psicológico”, admite. “Não sei dizer se não se recupera nunca (de um trauma desses). Isso, só o futuro vai mostrar. Mas, tenho medo de sair de casa e, a qualquer momento, ser detido pela polícia e ter que comprovar, pela terceira vez, que não sou bandido”.

O violoncelista Luiz Carlos Justino, de 26 anos, foi preso injustamente por duas vezes, causando prejuízos significativos à sua saúde mental  Foto: PEDRO KIRILOS

Neste Dia Nacional de Mobilização Pró-Saúde da População Negra, é fundamental lembrar que o racismo pode impactar negativamente a qualidade de vida da população negra. Quem reforça é Fabio Rosé, diretor-geral de Pessoas e Cultura da Dasa. “A discriminação racial aumenta a probabilidade de desenvolvimento de problemas mentais na população negra em comparação a outros grupos étnicos. A depressão é apontada como o principal transtorno mental associado ao racismo e, segundo a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), jovens negros têm uma probabilidade 45% maior de desenvolver o quadro”.

Não por acaso, a saúde mental da população negra mereceu um capítulo à parte do Guia de Atenção à Saúde da População Negra, elaborado pela empresa. “A discriminação cotidiana aumenta as probabilidades de indivíduos negros desenvolverem sintomas depressivos, afetando negativamente sua capacidade de prevenir doenças físicas e mentais”.

O objetivo da Dasa ao elaborar o guia é, nas palavras de Gustavo Pinto, diretor médico de Saúde e Plataformas Digitais da empresa, “romper as barreiras de acesso aos serviços de saúde” e “abordar as especificidades clínicas e sociais no cuidado da população preta e parda”.

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“Nós reconhecemos um fato que é comprovado por dados: a necessidade da ampliação do acesso à saúde e o desenvolvimento de abordagens específicas para promover a equidade da saúde e combater as desigualdades sociais e raciais existentes. Tais desigualdades afetaram significativamente a saúde da população negra”, afirma o executivo. “De forma geral, a população negra ainda enfrenta iniquidades que prejudicam sua saúde, como a falta de acesso a cuidados médicos adequados, a falta de representatividade na pesquisa médica e o menor acesso à educação de qualidade”.

Para além da saúde mental

O Guia de Atenção à Saúde da População Negra, escrito por João Felix Leandro de Souza Araújo e organizado por Fabiane Minozzo e Maria Claudia Nunes dos Santos Pereira, não fala apenas de saúde mental. Aborda também, entre outros tópicos, as doenças cardiovasculares – segundo o documento, “a principal causa de mortalidade na população negra são as doenças cardiovasculares relacionadas à hipertensão arterial, condição até 40% mais prevalente na população negra”.

A saúde da mulher negra também ganha destaque: “Mulheres negras têm maior risco de morbidade e mortalidade em relação a diversas doenças, incluindo câncer de mama, e de colo uterino, complicações de diabetes, bem como doenças infectocontagiosas”, diz o texto. Outros quadros citados são obesidade, doença renal e câncer de próstata, também mais prevalentes em indivíduos negros.

Das muitas descobertas feitas ao longo do processo de elaboração da cartilha, Fabio Rosé destaca algumas: mulheres pretas e pardas têm até 38% menos probabilidade de receber anestesia durante o trabalho de parto e menos informação nas consultas de pré-natal de alto risco. “Muitas gestações são interrompidas por complicações que poderiam ter sido percebidas com mais acesso a recursos diagnósticos. Tudo isso é muito nevrálgico e chocante”, lamenta o diretor-geral de Pessoas e Cultura da Dasa.

Caminhos para a mudança

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Mas, como alterar um cenário onde predomina, entre outros aspectos, o acesso limitado aos serviços de saúde e a falta de representatividade em estudos clínicos? Gustavo Pinto aponta o caminho: “Medidas afirmativas têm importante papel social nas macromudanças. Na Dasa, nosso time de diversidade se reúne periodicamente para traçar ações inclusivas e planos de carreira para mitigar qualquer possibilidade de racismo institucional. A iniciativa privada tem muito a contribuir neste sentido”, afirma o diretor médico de Saúde e Plataformas Digitais da empresa.

Para a socióloga Diana Anunciação Santos, coordenadora do Grupo de Trabalho Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a população negra não recebe o atendimento de saúde adequado nem na rede pública nem na rede particular de atenção à saúde no Brasil.

Segundo ela, o “não acesso aos serviços de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS) ou o acesso precarizado da maior parcela da população brasileira ratifica a presença do racismo institucional no país”.

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“As instituições de saúde pública e também as privadas selecionam o critério de raça/cor e o pertencimento social para diferenciar a forma de cuidado e de atenção aos usuários”, afirma a especialista. “Diante disso, identificamos o quanto a população negra é negligenciada pelo Estado e pela sociedade brasileira. O imaginário social compreende o acesso à saúde de boa qualidade como aquele destinado apenas a uma camada diferenciada da população brasileira, aquela que pode pagar pelos procedimentos médicos ou, então, que possuem planos de saúde”.

Diana vê com bons olhos o lançamento do Guia de Atenção à Saúde da População Negra, de Dasa. “Tem grande relevância neste contexto de invisibilidades, exclusões, estigmatizações e discriminações raciais vivenciados historicamente pela população negra”, comenta.

“O lançamento deste guia dá um salto qualitativo na forma como os profissionais de saúde, gestores e o próprio serviço devem estar atentos e preparados para atender às especificidades dos determinantes biológicos que promovem os adoecimentos, como também aos processos de determinação social que colocam a população negra em condição de riscos de adoecimentos, agravos e mortes muito maior que a população não-negra”, acrescenta.

Ainda segundo a socióloga, a elaboração do manual atende aos requisitos da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, instituída no dia 13 de maio de 2009, que tem como objetivo “promover a saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e serviços do SUS”.

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