PUBLICIDADE

Opinião|Adeus à Merça: onde os garçons respeitavam nossa quietude, sabiam nossos nomes e a gente, os deles

Reduto boêmio da cidade fechou as portas no último fim de semana depois de 56 anos de funcionamento

Foto do author Marcelo Rubens Paiva
Atualização:

Conheci a mãe dos meus filhos num bar da Vila Madalena, que eu chamava de A Merça, e ela, O Merça, divisão de gênero que fazia sentido, pois a minha geração ia beber numa mercearia, que vendia papel higiênico, sabão em pó, enlatados, além de cerveja, cachaça, livros, pôsteres e DVDs.

Com o tempo, aumentou de freguesia, por conta de uma geração mais jovem que a adotou e passou a se programar para beber no balcão e mesas engorduradas, forradas por arte de quadrinistas, como Rafael Grampá, do bar Mercearia, que abarrotava de universitários às quartas e quintas, afastando os antigos frequentadores, que preferiam o sossego nostálgico e frequentavam horários alternativos como segundas, terças e os almoços no fim de semana.

Fachada do bar Mercearia São Pedro que encerrou suas atividades no último domingo, 25, após 56 anos de funcionamento na Vila Madalena. Foto: Taba Benedicto/Estadão

PUBLICIDADE

A casualidade do amor é aterrorizante. Se não tivéssemos decididos ir ao bar com amigos naquela noite, não nasceriam os dois moleques com quem vivo. Era uma segunda-feira fria, tinha apenas duas mesas com gente no bar, uma com meus amigos de sempre, escritores, poetas, pessoas de teatro que sabem diferenciar uísque de um Bourbon, pinga boa da ruim, cerveja com milho ou cevada, e raramente pediam vinho.

Noutra mesa, estudantes da pós-graduação de Filosofia da USP festejavam uma tese bem-sucedida. Foi nela que conheci a mãe. A simbiose entre as mesas foi imediata. Não se sabia quem era aristotélico e quem era um animal político, numa atípica lúcida dionísica noite de bar (ou mercearia).

Eu não era dos frequentadores veteranos, apesar de fazer parte na turma adotada por Nick Cave, quando morou na Vila Madalena e se casou com a Vivi, uma agregadora dos anos 1980.

Meu amigo Mário Bortolotto me falava maravilhas do lugar. Fui numa noite aleatória, sentei numa mesinha na calçada, pedi uma marca de cerveja, veio outra, pedi mandioca frita, veio batata frita, e o vizinho do bar passou a gritar com os frequentadores e jogar água na calçada, que escorria entre nós, para nos afugentar.

- Como você adora um lugar que não tem nexo? – perguntei ao Bortolotto.

Publicidade

Nunca me esqueci da sua resposta: - Essa é a graça.

Ao me mudar para o Sumaré, passei a ser um frequentador assíduo. Eu ia a pé. Bafômetros não eram problema. Tudo me atraía nela, as pessoas, a comida na chapa feita pelo Tonhão, que por vezes saía do balcão com uma vara para caçar abacates na praça vizinha; e pedia sigilo. A bandeja lotada de pastel feito pela dona Penha era disputadíssima. Sem contar a variedade de cervejas.

Um mistério era saber como anotavam nossos pedidos. A cachaça, eu pedia sugestões a quem me atendesse. Às vezes, falava:

- Me dá aquela pinga de que eu gosto. A da última vez.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Eles sabiam qual, da minha intolerância à lactose e a bêbados inconvenientes que nos tratam com uma intimidade excessiva. Porque muitas vezes queríamos ficar anônimos, olhar o vazio, o vácuo da existência, com o conforto da falta de assunto. Os garçons, que a essa altura eu sabia os nomes, e eles, o meu, respeitavam nossa quietude de ideias, e nos defendiam de ruídos. Nos protegiam.

A relação com a literatura nasceu nos primórdios. Era o bar de Mário Prata, Reinaldo Moraes e seus seguidores. Vendia livros. Livros com a curadoria de um dos sócios, Marquinhos. Que colocava no caixa uma pilha de páginas de jornais de falavam de livros, dos nossos livros. Quem fosse pagar, lia.

Certa vez, na fila, indiquei um livro do Foster Walace a uma frequentadora. Ela comprou. Indiquei a outros. Durante muito tempo, uma pilha de Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, reunião de crônicas e ensaios com prefácio de Daniel Galera, um frequentador do bar, e muito bêbado comprou aquele livro, ficava entre a maquininha e a caixa registradora.

Publicidade

Marquinhos não sossegava. Passou a fazer nossas noites de autógrafos lá. Deixava uma mesa com uma bandeja de frios digna de um imperador romano. Quando lancei O Homem Ridículo, um livro de crônicas, ele fez um combo: quem comprasse o livro ganharia um pastel e uma longneck 330 ml. E teve show do Saco de Ratos, banda do Bortolotto.

Abriu no anexo um local de cursos de literatura. Era lá que eu encontrava toda a geração de escritores e tradutores na ativa, os que passavam pela cidade, os exilados, consagrados, premiados, os novos talentos. Debatíamos sobre autores consagrado superestimados ou subestimados. Sobre o que estava por vir. Sobre o imperdível. Sobre filmes antigos, relíquias, música, séries de TV. Com a paz necessária que buscávamos. Protegidos e alimentados por nossos amigos garçons.

Que por vezes, nos colocavam num táxi, sugeriam parar de bebermos, emprestavam dinheiro. Que, se o papo estivesse animado, fechavam a porta em respeito à Lei do Silêncio, conosco lá dentro. Por vezes, amanhecíamos juntos.

O racha entre os dois irmãos sócios decretou seu fim. A gentrificação da Vila Madalena cresceu os olhos da especulação. O fim foi anunciado, adiado, confirmado.

Marquinhos arrastou amigos, os pasteis e livros para o Bar Livraria Ria. Tem lançamentos, shows, caldos, cursos e, claro, debates. A vida segue. A quantidade de livros que li graças a indicações embriagadas transformou a minha vida e literatura. E do garçom amigo, desse não poderemos abrir mão jamais.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva

É escritor, dramaturgo e autor de 'Feliz Ano Velho', entre outros

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.