Biografia de Trotski pretende desmistificar líder bolchevique

Robert Service se diz o primeiro autor fora da Rússia e não trotskista a se debruçar sobre a vida do revolucionário, mas falha ao retratar bolchevique

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Por Marcelo Godoy
Atualização:
Geoffrey Rush interpretou Trotski no filme 'Frida', de 2002 Foto:

Professor de história russa da Universidade de Oxford, Robert Service se lançou ao desafio de escrever as biografias de Lenin, Stalin e Trotski. Esta última, de longe a mais polêmica delas, acaba de ser lançada no Brasil pela Record. Service é um conservador que se propôs a tarefa de desconstruir o que ele considera ser os mitos e equívocos em torno da figura do líder bolchevique, a quem retrata como um político sanguinário, pronto a reprimir as aspirações populares, que se aproximava de Stalin “nas intenções e nas práticas”. Sentencia ainda que sua família imediata – assassinada por Stalin – “morreu por causa dele (Trotski)”. E conclui o livro afirmando que “a morte lhe chegou prematuramente por haver lutado por uma causa mais destrutiva do que jamais teria imaginado”. Parece dizer que Trotski teve um fim esperado para um comunista: uma picaretada na cabeça desferida por um sicário de Stalin, crime ocorrido no México, em 1940.

Service não é alheio às paixões que seu personagem desperta. Ao escrever Apologie pour l’histoire, Marc Bloch afirmou que todo historiador devia ter pelo menos uma paixão, resumida em uma palavra que dominava e iluminava seu trabalho: “compreender”. Compreensão do homem e seu tempo em meio ao desafio posto pela justiça e pela verdade. Jacques Le Goff precisava: “compreender, portanto, não julgar”. Um desafio que aumenta quando o objeto do historiador é uma vida. E se torna maior ainda quando a vida ultrapassa o anonimato, transborda o limite das miniaturas históricas e se torna símbolo de um tempo, como São Francisco de Assis. Compreender foi o que Ian Kershaw faz em seu monumental Hitler, com a ajuda de Max Weber e seu conceito de autoridade carismática para explicar a natureza da liderança nazista. Ou o que Le Goff fez em seu Saint François d’Assise.

Robert Service é o primeiro historiador ocidental não comunista a biografar Trotski Foto: Wikimedia Commons

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O personagem atual de Service, além de escritor e teórico marxista, comandou a Revolução de Outubro de 1917 ao lado de Lenin, organizou o exército vermelho e acabou exilado e assassinado. Para compreender a tarefa de Service é preciso lembrar que o bolchevique era um político que publicou memórias (Minha Vida) cujo estilo e qualidade literários só são igualados por Winston Churchill. Sua história foi ainda contada em uma das mais bem-sucedidas biografias políticas até hoje produzidas: a trilogia de Isaac Deutscher, Trotski, o Profeta Armado, o Profeta Desarmado e o Profeta Banido.

E o que faz Service diante do personagem e do desafio? Primeiro, julga os concorrentes, historiadores e biógrafos. Diz que Deutscher “rezava pela cartilha de Trotski” e desqualifica o historiador francês Pierre Broué, autor de Trotsky (Fayard, 1988), a quem chama de “idólatra”. Service começa, pois, em desvantagem. Primeiro, não tem o estilo e a qualidade literária de Trotski ou de Deutscher. Também não demonstra a capacidade de análise de Broué, autor trotskista acostumado ao debate sobre as nuances do pensamento do personagem.

O revolucionário bolchevique Leon Trotski foi biografado por Robert Service em seu mais recente livro Foto:

Vaidade. Service se diz o primeiro autor fora da Rússia e não trotskista a publicar uma biografia completa de Trotski – e, de fato, ele seria, se não levarmos em consideração os trabalhos de Ian Thatcher e Geoffrey Swain. Service se vale em diversas passagens desses autores, pioneiros na “desconstrução dos mitos em torno de Trotski” – para tanto, usaram argumentos que, no passado, foram os de historiadores stalinistas. Sua pretensão se revela uma vaidade pueril. Ainda mais porque, no caso do bolchevique, não há mais nada de novo sob o sol desde que o historiador russo Dmitri Volkogonov, com o depoimento do general da KGB Pavel Sudoplatov, revelou detalhes de como Stalin tramou o assassinato no México. Não sobrava muita novidade para Service explorar.

A solução do historiador britânico foi mais uma vez julgar. É longa a lista de epítetos que dedica a Trotski: arrogante, desonesto, egocêntrico, mandante de assassinatos em massa e advogado de métodos terroristas de governo. Lembra da repressão à revolta dos marinheiros de Kronstadt, em 1921 – mas isso Victor Serge já fizera em Memórias de um Revolucionário. O bolchevique seria frio e distante de familiares e enganara com seus escritos gerações de intelectuais ingênuos ao distorcer seu papel histórico. “Para muita gente no partido, Trotski parecia não ter princípios.” Service completa: “Até a elegância refinada de suas roupas era incômoda. Trotski adquiriu fama de ser um aventureiro sem compromissos ideológicos. (...) Ele não era confiável.” O retrato ocupa as páginas 162 e 163. Mas o leitor só o terá por completo se consultar a nota 50 da página 648 para saber que a expressão “muita gente” se refere à impressão de ninguém menos do que Stalin, o que é omitido no texto. O rival de Trotski pode até ter dito a verdade, mas seria bom que o biógrafo usasse outras fontes para corroborá-lo.

Às vezes, Service parece um moralista, como o britânico Thomas Carlyle de História da Revolução Francesa. Só que, em vez do beletrismo, de Madame du Barry e de Luís XV, temos Trotski e a amante, a pintora Frida Kahlo, descrita como uma “ventoinha emocional”. Service chega a dizer que o marido dela, o pintor mexicano Diego Rivera, tinha paixões incontroláveis e era “conhecido por ameaçar pessoas com sua pistola”, o que faria dele “um homem típico de seu povo”.

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As críticas ao personagem convivem com elogios, conduzindo o leitor a uma sucessão de “uma no cravo e outra na ferradura”, como nota a historiadora Sheila Fitzpatrick na London Review of Books. Sheila diz que Service tenta mostrar que, se em vez de Stalin, Trotski tivesse substituído Lenin no comando da URSS, nada seria diferente. Seria trocar seis por meia dúzia. E afirma que Trotski até podia ser tudo o que Service diz. Em Terrorisme et Communisme, o bolchevique deixara claro o que pensava sobre como distinguia o terror branco do vermelho na guerra civil russa. “O terror do czarismo era dirigido contra o proletariado. Nossas comissões extraordinárias fuzilam os grandes proprietários, os capitalistas e os generais que se esforçam por restabelecer o regime tzarista. Você consegue captar essa nuance? Para nós, comunistas, ele é mais do que suficiente.”

Mas, como diz Sheila, “é remotamente plausível que Trotski, um judeu, se tornasse paranoico sobre os judeus após a guerra e lançasse uma campanha contra o cosmopolitismo”, como fez Stalin nos anos 1940, “ou, antes da guerra, Trotski tivesse pensado que o partido estava cheio de inimigos do povo, conspirando para destruir a União Soviética e montasse uma tão selvagem, louca e indisciplinada caça às bruxas como foi o Grande Terror. Trotski e Stalin tinham coisas em comum, mas o estilo paranoico não era uma delas.”

Patenaude. Sheila não está só. A mais dura crítica a Service partiu de Betrand Patenaude, do Hoover Institution, de Stanford. Na American Historical Review, ele aponta mais de “quatro dúzias de erros”, como a afirmação de que Mikhail Gorbachev reabilitara Trotski. Em outro momento, Service trata o escritor André Breton como “pintor surrealista” e faz um comentário de cair o queixo: “Seus quadros manifestavam solidariedade com o povo trabalhador.” O erro fez a tradutora brasileira escrever em nota: “O autor não apenas insiste no equívoco de chamar Breton de pintor, como também lhe retira a condição de figura de destaque na literatura”.

Service demonstra desconhecer o debate sobre a cultura proletária (Proletkult) nos anos 1920 e quase ignora os papéis de Trotski, depositados em Harvard. Faz afirmações sem citar fatos e cita fatos sem apontar fontes. Patenaude conclui que “o livro de Service é completamente não confiável como referência”, pois não segue “padrões básicos de um estudo histórico”. Juízo duríssimo. O pensador liberal Isaiah Berlin afirmava que “compreender não significa aceitar”. Service abdicou da compreensão. Decidiu apenas julgar e condenar. Trata-se de uma pretensão modesta para um historiador.

Capa do livro 'Trotski - Uma Biografia', de Robert Service Foto: Editora Record

Trotski - Uma Biografia Autor: Robert ServiceTradução: Vera RibeiroEditora: Record 770 páginas R$ 94,90

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