Com a democracia em crise, se multiplicam os livros que explicam a política atual

No Brasil e no mundo, obras analíticas ocupam as prateleiras para ajudar o leitor a compreender o momento atual

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Por Elias Thomé Saliba
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“Não rir, nem chorar, nem detestar, mas sim compreender”. Este conhecido bordão de Spinoza é hoje o conselho mais útil para milhares de pessoas que se informam apenas por meio das redes sociais, deixando de lado aqueles esquecidos conselheiros: os livros. Se pensarmos no atual declínio dos regimes democráticos, na polarização política que expele ódio pela diferença e na disseminação de notícias falsas – tudo o que corrói por dentro a cultura do pluralismo e da tolerância –, talvez o conselho seja ainda mais útil. Mas não é fácil se aventurar por dezenas de títulos que tratam do tema, pelos mais diversos ângulos, do declínio dos regimes democráticos às ameaças, retóricas ou reais, do autoritarismo alojado no interior dos mesmos regimes.

Militantes neofascistas fazem a saudação ao 'Duce' na cripta do ditador italiano Foto: TIZIANA FABI/AFP

Se é necessário começar, melhor escolher aqueles autores os quais, ainda bem jovens, foram testemunhas e, depois, intérpretes do fim dos fascismos e da ascensão das democracias. Umberto Eco tinha 11 anos quando ganhou seu primeiro prêmio em concurso cujo tema obrigatório para os jovens fascistas era “Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?”. “Ganhei”, escreve Eco, “porque eu era um garoto esperto!”. Em 1945, com 13 anos, cruzou com um dos primeiros soldados americanos a chegar em Milão: um negro sorridente que lhe deu um gibi de Dick Tracy e o seu primeiro chiclete, que o menino, à noite, colocava na água para durar mais. Viu as primeiras fotos do Holocausto e conheceu o significado do fato mesmo antes de conhecer a palavra. Ele conta tudo isto em O Fascismo Eterno (Record) texto de conferência realizada em 1995, notável pela concisão e primorosa pelos prognósticos. Para Eco, o fascismo não possuía nenhuma quintessência, era uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis, cuja única estratégia era uma obsessão da conspiração – possivelmente internacional –, o culto da ação pela ação, centrada na ideia de “não há luta pela vida, mas antes vida para a luta”: um culto do heroísmo estreitamente ligado ao culto da morte – que o herói fascista espera impacientemente provocando, na verdade, a morte dos outros. Afora isto – que guarda ainda estranha atualidade – o fascismo italiano não criou mais nada, segundo Eco, a não ser, segundo sua ironia ferina, “uma liturgia da moda que fez mais sucesso no exterior que Armani, Benetton ou Versace.” Outra testemunha intérprete é Madeleine Albright, que sofreu dois exílios: quando criança sua família fugiu, em 1939, da invasão alemã, da então Checoslováquia para a Inglaterra; voltou com sua família em 1945 e foi forçada a sair novamente, por conta da perseguição stalinista, exilando-se nos Estados Unidos. Professora em Georgetown, tornou-se a primeira mulher a virar secretária de Estado, na presidência Clinton. Hoje, com 85 anos, publicou Fascismo: um Alerta (Editorial Crítica), no qual ela procura responder questões cruciais, como “por que tanta gente em posições de poder vem tentando minar a confiança popular nas eleições, nos tribunais, na mídia e na ciência? “E, por que, afinal de contas, a esta altura do século 21, voltamos a falar de fascismo? A resposta da ex-embaixadora dos EUA na ONU é ríspida, direta ao ponto: “A razão única é Donald Trump: se pensarmos no fascismo como uma ferida do passado que estava quase sarada, colocar Trump na Casa Branca foi como arrancar o curativo e futucar a cicatriz.” Assim, em quase todo o livro, direta e implacável – definindo o fascismo menos como uma ideologia e mais como um projeto de tomar e controlar o poder –, fornece retratos bens delineados de Mussolini, Hitler, Franco – mas sobretudo, de algumas figuras que ela conheceu de perto, como Putin, Erdogan, Orbán, Maduro, Duterte, Kim Jong-un e, claro, Trump. Mas os retratos são meros gatilhos para uma detalhada cartografia histórica, já que uma definição abstrata de fascismo seria como descrever uma pessoa através de um único instantâneo fotográfico: Albright mostra como os cenários mudam e o olhar do observador se altera conforme os conceitos históricos acompanham o camaleônico processo dos fascismos, convertendo-os – como disse certa vez E. P. Thompson – em “famílias inteiras de casos especiais”. Já David Runciman, em Como a Democracia chega ao Fim (Editora Todavia) e Yascha Mounk em O Povo contra a Democracia (Cia. das Letras) partem de diagnósticos muito semelhantes, com a diferença que Mounk enfatiza a ascensão paralela do populismo: o retorno daquela reivindicação de representação exclusiva do povo, sem tolerar a oposição ou respeitar a necessidade de instituições independentes, como a Justiça ou a Imprensa. Runciman, mais bem-humorado, afirma que devemos evitar uma visão da história à moda de Benjamin Button, em que tudo que é velho torna a rejuvenescer. Os dois autores argumentam que ainda somos cativos da paisagem do século 20 onde buscamos imagens do colapso democrático: tanques nas ruas, violência, repressão e ditadores caricatos; mas, enquanto procuramos os sinais familiares de sua falência, nossas democracias já estão fracassando por motivos que desconhecemos. Hoje, a escala da violência política não é mais o que foi para as gerações anteriores – ainda existe, é claro, às margens da política e nos recônditos da imaginação de cada um, sem jamais assumir o centro do palco. Ela é o fantasma dessa história. No passado, a probabilidade de uma catástrofe tinha um efeito mobilizador, mas hoje tende a nos deixar paralisados pelo nosso medo. A revolução da informática também alterou por completo os termos operacionais da democracia: dependemos de compartilhamentos de informações que escapam tanto ao nosso controle como à nossa plena compreensão. Runciman acerta ao atenuar as previsões de Yuval Harari quando este prognostica o verdadeiro fim da história, porque esta equivaleria à extinção da iniciativa humana como determinante da mudança social: “Mas, para chegarmos a esta utopia, ainda precisamos ir daqui até lá”, conclui ele, com pertinência. O problema de Runciman é que, no epílogo do livro, ele imagina um final mirabolante, descrevendo as eleições americanas de 2053, com um chinês eleito presidente com a promessa de enfrentar o poder das gigantescas empresas de tecnologia! Mounk é mais comedido nas possíveis soluções e aposta numa saída ética, retirada em parte da filosofia do estoicismo: nunca faremos a coisa certa se sempre calcularmos (e nos encolhermos) demais em face do resultado provável dos nossos atos; sempre nos engajaremos em lutas discutíveis, por motivos imperfeitos –, mas devemos nos inspirar na coragem dos estoicos para defender os valores democráticos que tanto prezamos. Com exceção naturalmente de Eco, que escreveu no século 20, todos os autores tocam, em algum momento, nos impactos da revolução digital no derretimento dos valores democráticos. Mas nenhum vai tão longe quanto Giuliano Da Empoli, em Os Engenheiros do Caos – uma detalhada abordagem dos bastidores dos universos digitais de Trump, Boris Johnson ou Erdogan, nos quais cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, uma boutade ou a eclosão de um escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já é eclipsado por um outro, numa espiral quase infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática. “A dinâmica da web é a dinâmica do boato”, definiu Beatriz Sarlo, décadas atrás. Por trás das aparências extremadas deste populismo histriônico, esconde-se o trabalho feroz de dezenas de ideólogos e cientistas especializados em Big Data, criadores de bolhas digitais, sem as quais os líderes do novo populismo jamais teriam chegado ao poder. Como as redes sociais, a nova propaganda se alimenta cruamente de emoções negativas, pois são essas que garantem a maior participação, daí o sucesso das fake news e das teorias da conspiração. O twitter virou o Velho Oeste. Mas, a roda pode girar ao contrário e transformar tudo o que está aí, segundo a expressão de Manuel Castells, em “redes de indignação e esperança”. É claro que as ações dos engenheiros do caos – dentre os quais, entre muitos, o paradigma é Steve Bannon –, não explicam tudo, pois se alimentam de dois ingredientes que nada têm de irracionais: o ressentimento de alguns meios populares, fundamentado sobre a realidade de profundos contrastes econômicos e sociais; e uma máquina de comunicação superpotente, originalmente concebida para fins comerciais, mas doravante transformada em instrumento privilegiado de todos aqueles que, ao largo das instituições democráticas, têm por meta multiplicar o caos. Seria ingenuidade procurar soluções a partir destas leituras, mesmo porque em História, também vale o bordão de Spinoza, com o acréscimo de que fazer as perguntas certas também já é uma forma de respondê-las. Todos os autores, apesar das diferentes sondagens só apontam um caminho para defender a democracia: a união de todos os opositores, urgente, pois quando hesitam e deixam de trabalhar unidos já é tarde demais para superar a impotência. Para quebrar tal quadro, ainda mais deprimente com a atual pandemia, nada melhor que uma certo dose de bom humor. E ela nos chega através de Instruções para se Tornar um Fascista, de Michela Murgia (Editora Ayiné), uma formidável inversão irônica sugerindo regras de como atingir o perfil ideal de um fascista adaptado aos novos tempos digitais. Sugere, por exemplo, numa das primeiras regras, que após o povo já estar educado para se reconhecer num chefe, o segundo estágio é manter o consenso por meio de uma comunicação eficaz e o mais banal possível: “Banal, bem banal, vocês entenderam?”– escreve a autora. No terceiro estágio, alfineta a autora-, “basta acionar a formidável arma da conspiração, já que o inimigo improvável é muito mais odiável do que aquele que podemos encontrar toda manhã na padaria.”*ELIAS THOMÉ SALIBA É HISTORIADOR, PROFESSOR TITULAR DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ‘RAÍZES DO RISO’ (COMPANHIA. DAS LETRAS)

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