Continente africano é redescoberto em livros de especialistas

Livros recém-publicados visam iniciar público leigo à história e às questões culturais da África

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Por Rodrigo Petronio
Atualização:

Ainda falta muito para termos uma produção e uma circulação de conhecimento à altura do que a África exige. Afinal, é um continente inteiro, dono da história mais antiga do mundo e o lugar de emergência do próprio homo sapiens. Nesse sentido, a Coleção África e os Africanos, que a Editora Vozes acaba de lançar sob a coordenação dos professores brasileiros José D’Assunção Barros, Álvaro Nascimento e José Jorge Siqueira, é um acontecimento. 

África está no centro dos holofotes em lançamentos de livros 

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A primeira safra traz quatro obras: No Centro da Etnia: Etnias, Tribalismo e Estado na África, organizada por Jean-Loup Amselle e Elikia M’Bokolo, Escravidão e Etnias Africanas nas Américas: Restaurando os Elos, de Gwendolyn Midlo Hall, Atlas das Escravidões: da Antiguidade até Nossos Dias, de Marcel Dorigny e Bernard Gainot, e, por fim, Pensar Nagô, de Muniz Sodré. Não bastasse esse manancial, a Imprensa Oficial em parceria com as Edições Sesc, acaba de publicar pela primeira vez em português o clássico Arte Africana, de Frank Willett.

A obra de M’Bokolo e Amselle é um conjunto de artigos acadêmicos. Além dos organizadores, reúne textos de especialistas como Jean-Pierre Dozon, Jean Bazin, Jean-Pierre Chrétien e Claudine Vidal. Dentre todos os livros, talvez seja aquele cujo objetivo é o mais contraintuitivo: desconstruir a noção de etnia. Para os autores, a maior parte dos equívocos de nossa compreensão da África reside no fato simples: os aspectos que reportamos a etnias geralmente não são decorrentes de etnias. 

Muitas questões definidas como étnicas seriam questões sociais e históricas, e assim deveriam ser compreendidas. Ao fazer essa confusão, a imprensa, boa parte dos trabalhos acadêmicos e o senso comum obstruem ainda mais uma compreensão da complexidade africana. M’Bokolo e Amselle defendem uma substituição de interpretações essencialistas, fundadas na etnia, por interpretações pragmáticas, ligadas aos processos de cada região. 

Isso não quer dizer que as etnias não existam. Quer dizer apenas que os etnônimos (designações das etnias) precisariam ser vistos de um modo performativo, como descrições de relações contingentes e dinâmicas, não como traços substancialistas de determinados grupos. A obra também critica a noção de mestiçagem. Este conceito seria extremamente capcioso. Ao mesmo tempo em que elogia a mescla das raças, pressupõe a existência de uma eventual indistinção racial primeira. Um grau zero da raça, perigosa ideologia racista herdada do século 19. 

Hall, por sua vez, é conhecida por sua vasta pesquisa sobre as etnias que originaram a escravidão da Louisiana (EUA): Databases for the Study of Afro-Louisiana History and Genealogy (1719-1860), um banco de dados virtual lançado em CD pela Louisiana State of University Press (2000). A obra que acaba de ser publicada é uma expansão desta pesquisa original. Empreende uma genealogia de todas as etnias africanas que foram escravizadas e migraram para as Américas. O objetivo de Hall é criticar uma concepção genérica, abstrata e tão difundida do negro escravo. Quer devolver a cada povo escravizado uma história, uma cultura, uma língua, enfim, um rosto. 

Já o trabalho de Dorigny e Gainot é de extrema relevância para os estudos sobre o fenômeno da escravidão em geral. Percorre desde a Antiguidade até o intervalo entre os séculos 16 e 19, quando se deu a universalização mercantil do escravagismo. Os mapas, índices, dados e quantificadores dão uma amostragem muito realista do processo como um todo. 

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A obra de Sodré se insere em um instigante debate contemporâneo sobre as definições e os limites da filosofia. Em que medida a filosofia é ocidental? Em que medida as outras ontologias (estudos do ser) e narrativas acerca dos fundamentos (arkhé) do mundo não podem ser consideradas filosofias? A partir de seu conceito de comunicação transcultural, Sodré parte de uma matriz nagô para formular o que seria uma filosofia transcontinental. Excelente contribuição aos recentes estudos de ontologias comparadas e às relações entre filosofia e comparativismo.

Somados a autores mais conhecidos do público brasileiro, como Achille Mbembe, Kwame Anthony Appiah e outros pensadores do movimento de descolonização, do biopoder e do africanismo, estes lançamentos abrem um espaço excepcional para que o leitor possa compreender o continente africano sob outras perspectivas. Ajuda-nos a declinar a palavra humanidade no plural. Apenas assim, ampliando os horizontes das humanidades, passadas e futuras, existentes e possíveis, a humanidade no singular pode se fortalecer e prosperar. 

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