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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Ao editar um texto literário, posso manter racismos, misoginias, homofobias?

‘Na nossa época, as histórias eram assim, e a gente sobreviveu’. Sim, sobrevivemos e moldamos um mundo racista, misógino e excludente

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Muitos livros possuem termos e julgamentos que ficaram inadequados para a nossa sensibilidade. Autores que vão de Agatha Christie a Monteiro Lobato sofrem contestações; surgem edições adaptadas. Sempre precisamos pensar sobre essa necessidade de mudar o passado.

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Minha primeira análise é como historiador. Exclusivamente com os óculos de especialista na área, nada posso alterar em um documento. Pelo contrário, quanto mais chocante, repulsivo ou terrível foi um termo (ou descrição), mais provável que ele contenha o estranhamento do que não existe mais. Na alteridade, está parte do mundo que desejo visitar: o passado. Mudar um documento é adulteração de fonte. Minha tarefa (a do historiador) não pode ser transformar chumbo em ouro. Sim, posso fazer notas e explicações ao pé da página, jamais alterar dados ou termos. Esse é o campo da História. Documentos expõem um mundo que desapareceu; mudá-los mostra a força do presente, mas não do passado.

A segunda análise é quando edito texto literário para adultos. Meu objetivo não é restaurar um documento original em si. Posso manter racismos, misoginias, homofobias? O parágrafo anterior expressava um dado profissional. Agora, emito uma opinião: posso optar por manter ou modificar, porém com uma nota explicativa em ambos os casos. Surgiu um termo inadmissível? Posso seguir ou substituí-lo, explicando como estamos em outro patamar. Eu preferiria deixá-lo, com uma nota explicativa. Considero ruim reescrever, sem justificativa, uma expressão, apagando uma ideia preconceituosa, pois isso poderia ser “passar pano” excessivo para um fato real. O preconceito não pode ser ignorado ou deletado. Ele precisa de análise.

Por fim, temos uma situação distinta: livros para crianças. O teor das histórias infantis muda muito. Quase nenhuma mãe leria com tranquilidade uma narrativa original dos Irmãos Grimm para os rebentos dormirem. Charles Perrault estaria, hoje, na cadeia. La Fontaine seria cancelado até o dia do Juízo Final. Andersen possui ambiguidades notáveis. A violência era extrema, o preconceito, declarado, os homicídios, constantes. O controle das crianças pelo terror era mais aceito. Para o aprendizado inicial de valores, eu sou favorável a histórias muito adaptadas ou produzidas a partir das nossas crenças atuais. Meu objetivo não é o restauro de um documento histórico nem análise de adultos formados. A atitude de alguém que educa crianças de nove anos não pode ser idêntica à de um profissional de pós-graduação. Quando entrego um texto a uma criança, estou colaborando para formar caráter e ética. É difícil para a mente infantil elaborar perspectiva histórica e distinguir penumbras e luzes.

André Valli como Visconde de Sabugosa em 'O Sitio do Pica Pau Amarelo' na versão de 1977 Foto: Nelson Di Rago/Globo

Ouvi de um senhor a seguinte ideia: “Na nossa época, as histórias eram assim, e a gente sobreviveu”. Sim, sobrevivemos e moldamos um mundo racista, misógino e excludente. A violência contra animais nascia da canção Atirei o Pau no Gato? Não apenas, mas também. Empatia com doentes? Eu me lembro de uma música que indicava bater em alguém já machucado: “Samba Lelê tá doente / Tá com a cabeça quebrada / Samba Lelê precisava / É de uma boa lambada”. Como se vê, a inocente letra não poderia ser um guia de cuidados para traumatismos cranianos.

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De novo e de forma incisiva: o racismo, a violência contra a mulher, a crueldade com animais e a homofobia não nasceram de uma música. Apesar disso, como nossa sociedade ostentava esses graves desvios éticos, sem vergonha visível, isso era um sistema que passava por tudo: da educação aos jogos infantis.

Alguns dirão que isso é uma bobagem politicamente correta. Eu argumentaria que é cumprir dispositivo constitucional, especialmente os valores do artigo quinto da Carta Magna de 1988. Crianças nascem sem valores éticos definidos. O esforço dos pais, professores e de toda a sociedade irá moldando o caráter dos pequenos lentamente: tolerância ativa, respeito à diferença, empatia, solidariedade, etc. É estranho exigir obediência a mim como autoridade paterna (ou professor) e relativizar a obediência à Constituição.

Adultos formados podem ler tudo. Crianças em formação devem ser expostas a questões compatíveis com sua idade. Não posso dar feijoada com torresmo a um bebê. Não é recomendável uma caipirinha a uma criança de cinco anos. Se o estômago e o intestino devem ser respeitados nos limites de cada idade, o cérebro também merece cuidados com gradação de experiências.

Emiti uma opinião subjetiva. Sinteticamente: documentos históricos devem ser intocados; outras obras para adultos podem ou não ser modificadas, mas implicam notas explicativas (nos dois casos). O que for destinado à educação de crianças deve ser bastante filtrado. Eu não defendo um mundo “politicamente correto”; anseio por uma sociedade menos violenta e preconceituosa e que pare de deprimir, machucar e matar a diferença. Esse cuidado vai ajudar a selecionar quais experiências são compatíveis com a mente infantil. Sem curadoria, nem a Bíblia pode ser inteiramente revelada a alguém em formação. Fica difícil justificar para um menino de sete anos o motivo de Davi ter cortado duzentos prepúcios inimigos como oferta de casamento para conseguir a filha do rei Saul. Tenho esperança na boa curadoria de pais e de professores.

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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