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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Quando Paris perdeu um playboy, mas o mundo ganhou um missionário

Volto ao lema ‘Missão dada é missão cumprida’, associado ao Capitão Nascimento, e retrocedo ao século 16,quando nasceu Francisco Xavier

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Foto do author Leandro Karnal

“Missão dada é missão cumprida”. A ideia está associada ao capitão Nascimento, do filme Tropa de Elite (José Padilha, 2007). A personagem interpretada por Wagner Moura é o sonho de toda corporação: uma vez emitida a meta, a liderança pode relaxar. A missão será realizada a qualquer preço. Concebido como um policial violento e torturador, Nascimento virou herói de muita gente e até de modelos de treinamento em empresas.

Volto ao lema e retrocedo. Em Xavier (município espanhol da comunidade de Navarra), nasceu um aristocrata chamado Francisco, em 1506. Em meio a reveses de guerra, a família enviou-o ao Colégio Santa Bárbara, ligado à Universidade de Paris e com influência do humanista português Diogo de Gouveia. O jovem Francisco aprendeu línguas e cativou pessoas pela facilidade de conversa, habilidades atléticas e desenvoltura social. Na escola, encontrou um conterrâneo mais velho, Inácio de Loyola, que estava empenhado em retirar Francisco da vida boêmia. Para isso, usou a frase do Evangelho: “De que adianta um homem ganhar o mundo todo se vier a perder sua alma?” A influência inaciana deu certo: o agitado Francisco tornou-se cofundador da Companhia de Jesus. Paris perdeu um playboy; o mundo ganhou um missionário.

Torre Eiffel, em Paris Foto: Christophe Ena/AP

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O rei D. João III pediu conselhos ao mesmo Diogo de Gouveia sobre missionários ao Oriente. O erudito insistiu nos jovens jesuítas. Francisco Xavier, a mando de Inácio, seguiu na frota de Martim Afonso de Sousa (sim, o fundador de São Vicente) para a Índia.

Em Goa, Francisco começou sua ação missionária. Os desafios foram enormes. Os portugueses da Índia não levavam vida cristã exemplar. Os jesuítas desejavam novos horizontes de expansão. Ao sul do subcontinente indiano, existia um grupo marginalizado: pescadores e coletores de pérolas. Foram alvo da ação cristianizadora de Francisco. A cada etapa, ele teve que enfrentar uma nova língua e adaptações culturais. O modelo da expansão cristã estava ainda sendo definido. Quais seriam os graus de concessão aos hábitos locais? Ser cristão é ser europeu, necessariamente? O mesmo debate que Paulo e Pedro tiveram sobre o Cristianismo Primitivo (ser cristão é ser judeu?) foi algo que agitou as igrejas do século XVI. Converter primeiro qual grupo? Francisco Xavier pregava entre classes baixas e crianças; outros, mais tarde (como Matteo Ricci), acreditavam que converter governantes facilitaria a ação de catequese.

A ideia da formação jesuítica foi dar uma sólida base intelectual e garantir, pelos Exercícios Espirituais, uma adesão pessoal ao projeto cristão de tal forma que cada inaciano seguisse sozinho, sem muito apoio, tomando suas decisões nas regiões mais distantes do planeta. Eram soldados com grande autonomia e ampla base. Constituíram a vanguarda dos missionários.

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Francisco seguiu para Málaca e Molucas. Percorreu ilhas que hoje, em parte, pertencem à Indonésia. Conheceu um samurai convertido. Isso abriu caminho para a missão que fundou no Império do Japão.

Imagine, cara leitora e estimado leitor: em 1549, havia um jesuíta que estava fundando a obra missionária no Japão. Outro grupo estava chegando para fundar Salvador, no Brasil. Esses homens comunicavam-se por cartas (muitas!) e passavam meses ou anos sem saberem uns dos outros. Mandavam notícias e produtos (parte desse esforço vê-se na popularidade de frutas asiáticas pelo Brasil: mangas e jacas).

A missão de Francisco Xavier? Percorrer o maior e mais povoado continente do mundo e fazer sozinho (ou com pouca gente, como padre Cósimo de Torres e o irmão Juan Fernandes) uma obra de conversão monumental.

Depois de anos de viagens intensas e aventuras extraordinárias, Francisco morreu às portas da China, no dia 3 de dezembro de 1552 – um homem de 46 anos que trazia consigo, sempre, um crucifixo, presente do amigo-superior Inácio de Loyola. Morreu sobre uma esteira de vime simples, suspirando o nome de Jesus e olhando a imagem da cruz.

O corpo do jesuíta percorreu muitos lugares. Grande parte está na belíssima Basílica do Bom Jesus, em Goa, Índia. Um osso (úmero) está na igreja de São José, em Macau. Um curioso mindinho, arrancado a dentadas por uma fiel, repousa na Santa Casa de Lisboa. Na Igreja de Gesú, em Roma, há um relicário com parte do braço e a mão de Francisco, a mão que teria batizado 300 mil pessoas! Em frente ao seu magnífico altar em Roma, está o de Inácio, aquele mesmo que o enviou a mudar o mundo para garantir sua alma.

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Inácio e Francisco fundaram, juntos, a Companhia de Jesus. Foram canonizados ao mesmo tempo, em 1622. Xavier foi declarado padroeiro das missões pelo Papa Pio XI, juntamente com Santa Teresinha de Lisieux. A carmelita viveu enclausurada, sem nunca ter ido às terras distantes, porém rezava dia e noite pelo sucesso da cristianização. Francisco percorreu uma jornada enorme pela Europa, Ásia e África. Missões distintas interligadas pela fé de ambos. Em Lisieux (França) ou na ilha de Sanchoão (China), Teresinha e Francisco cerraram os olhos com a ideia de que a missão fora cumprida. Uma boa esperança para todos nós.

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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