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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Vanguarda para sempre

Beethoven virou um contemporâneo permanente, como previu Stravinski. Alçou voo para a eternidade

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Atualização:

Ludwig van Beethoven é um dos maiores músicos da história. Se for feita uma indicação do vencedor de todos os tempos, vai disputar, palmo a palmo, com Johann Sebastian Bach. Se for uma lista dos três melhores, Beethoven estará sempre nela. Uma criança vai sorrir com a melodia da peça Pour Elise. Um adulto ficará impressionado com o tom dramático do início da Quinta Sinfonia. Todos amarão o quarto movimento da Nona. O começo da Sonata ao Luar emociona, há duzentos anos, amantes. Mesmo o mais duro crítico musical achará a Missa Solemnis uma obra-prima. Cada um pode indicar sua peça favorita.

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Amo quase tudo do mestre de Bonn. Algumas obras são apaixonantes na primeira audição. Outras demandam o preparo do ouvido. Os quartetos finais para cordas pertencem a esse grupo.

Um quarteto de cordas tradicional possui dois violinos, uma viola e um violoncelo. Quando os quatro membros são talentosos e bem integrados, ouvi-los é uma experiência extraordinária. No fim da vida, a energia criativa de Beethoven se voltou para eles. A surdez tornava intragável o humor do gênio. Ao mesmo tempo, isolava-se no seu universo e deixou de escrever para sua época. Visionário, plantou sementes que levariam anos para crescer. A não ser que você seja um abençoado músico com ouvido profissional, imagino que levará um tempo para entender o que se passava na cabeça do compositor.

Mural de Ludwig van Beethoven na Alemanha, em foto de 2019. Foto: Kuegeler/Reuters

O Quarteto 13, em Si Bemol Maior (Op. 130), terminava com uma fuga extraordinária. O autor usava a palavra “Lieb” para se referir a ele: querido, caro. Causou estranheza ao público e ao editor da partitura. Era livre demais das convenções, mesmo as menos rígidas regras do Romantismo. Com o tempo, Beethoven separou um trecho do quarteto e tornou-o autônomo. Isolada, a Grande Fuga (Op. 133) ficou ainda mais audaciosa. A obra foi dedicada ao seu aluno de piano e admirador, o arquiduque Rodolfo (cardeal e patrono das artes).

A Grande Fuga (Große Fuge) exige muito do ouvinte. Não envolve o lirismo de uma melodia fácil e que, entrando pelos ouvidos, fica impressa no cérebro. Demanda mais foco e repetições. É uma revelação elevada que se desfruta aos poucos. O homem das vanguardas do século 20, Igor Stravinski, afirmou que era música contemporânea e que seria contemporânea para sempre.

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No filme O Segredo de Beethoven (Copying Beethoven, 2006), a jovem discípula Anna Holz (atriz Diane Kruger) ouve a Grande Fuga, mas não entende. Depois, percorrendo lugares com sons diferentes, deixando-se levar pelas intuições da partitura, volta feliz e exclama ao criador que já conseguia compreendê-la. O filme é um delírio histórico, todavia tem bons momentos sobre a obra do músico alemão.

Curioso: J.S. Bach escreveu, ao final da vida, sua Arte da Fuga. Beethoven não apenas fez sua grande fuga, mas também produziu uma versão para piano a quatro mãos, instrumento com o qual ele começara sua carreira e para o qual pouco ou nada escreveria no ocaso. A fuga guiou a carreira de Bach e iluminou o final da de Beethoven.

A Grande Fuga convive com outras obras geniais, como, inclusive, o Quarteto para Cordas 14 (Op. 131). Ela causou em Schubert uma tal impressão a ponto de ele dizer que nada mais poderia ser feito depois. Richard Wagner (personalidade oposta ao tímido Schubert) entregou-se também aos encantos dos quartetos finais.

Os de número 15 e 16 completam o último grande arroubo criativo de Ludwig van Beethoven. O Brasil estava no Primeiro Reinado; o futuro Pedro II era um recém-nascido, quando essas notas foram ouvidas pelo público de Viena.

Como eu disse, a Grande Fuga não se revela por completo na primeira audição. Ela é uma floresta complexa. Precisamos apurar a percepção para distinguir galhos, árvores e folhas. Eu tenho a sensação de que a grandiosidade da obra é que o mestre abandonou a necessidade de agradar ao público. Ou melhor: desejou encantar um público ainda não nascido. O imperador da Áustria era Francisco I. Napoleão havia morrido. Os ventos revolucionários da França transformaram-se em fria neblina conservadora. A História tinha fluxos e refluxos, Beethoven nada mais escutava havia anos, sua solidão fez com que ouvisse a voz de uma Musa quase atemporal. Há uma distância enorme da Terceira Sinfonia dedicada inicialmente a Napoleão. Lá, o mestre olhava a história e o mundo. Na Grande Fuga, deixou de ter interesse notável pelos fatos do momento e mirou na eternidade. Acertou o alvo. Virou um contemporâneo permanente, como queria Stravinski. Alçou voo para a eternidade.

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Quando eu era jovem e estava triste, ouvia a Nona Sinfonia. Era muito eficaz. Hoje, eu ouço os quartetos finais, em especial a Grande Fuga. Ela me diz: “Não fuja da tristeza, ela é parte sua também. Sem ela, nada pode ser bom”. Abraço os sons em devaneios e, quase sempre, fico curado da fantasia de uma vida de gargalhadas. Beethoven me oferece uma existência interessante, não uma eufórica. Ele é um dos meus focos de esperança em plena maturidade. A Grande Fuga é o caos do humano elevado pela beleza divina.

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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