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Cult, raro e desconhecido, Ricardo Guilherme Dicke ganha nova chance; conheça sua obra e trajetória

Escritor que escolheu o exílio voluntário inseriu o sertão mato-grossense na literatura com trabalho sofisticado e elogiado de linguagem; ‘Madona dos Páramos’ já voltou às livrarias e Record prepara coletânea de contos inéditos

Por Amanda Calazans
Atualização:

Hilda Hilst, em entrevista a Caio Fernando Abreu, afirmou que Tolstói havia chegado com A Morte de Ivan Ilitch ao centro que ela buscava em seus livros, “uma certa tolerância com tudo o que te rodeia, com a tua condição de mortal”. Questionada se algum escritor brasileiro conseguiu se aproximar desse centro, ela respondeu: “Ricardo Guilherme Dicke, um homem impressionantemente prolixo, com uma linguagem que tem uma oleosidade fascinante. Numa novela chamada Madona dos Páramos, ele conseguiu o centro dele: esse centro prolixo, complexo, onde existe a volúpia da palavra”.

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Não foi a única vez em que Hilda Hilst (1930-2004) falou publicamente sobre o mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke (1936-2008). Em 2016, ao ler uma dessas entrevistas, o pesquisador Rodrigo Simon de Moraes se deparou com o nome desconhecido. “Caramba, quem é esse cara que eu nunca ouvi falar? Eu julgava que conhecia bem literatura brasileira”, pensou ele, à época doutorando em Teoria e História Literária na Unicamp. A pesquisa de Simon então se tornou o resgate da obra de Dicke.

“Desde que eu comecei meu doutorado, meu primeiro objetivo era que o Dicke voltasse a ser publicado por uma grande editora”, conta Simon, que junto à herdeira do autor levou a proposta para a Record. A editora relançou neste ano o romance elogiado por Hilda, Madona dos Páramos, e prepara uma coletânea de contos inéditos para 2025.

Até então, a última publicação dos livros de Ricardo Guilherme Dicke havia sido em 2012, pela cuiabana Carlini & Caniato Editorial. A relação da editora com o autor começou com a publicação de Toada do Esquecido & Sinfonia Eqüestre, em 2006. O lançamento, no Museu da Imagem e do Som de Cuiabá, foi o último com a presença de Dicke, morto em 2008.

A Carlini & Caniato não conseguiu renovar o contrato. Apesar disso, o sócio Ramon Carlini afirma estar contente com a reedição da obra por uma editora com poder de distribuição maior. “Dicke deve estar muito feliz hoje, acho que é um grande ganho. Ele merece isso”, diz o editor.

Quem foi Ricardo Guilherme Dicke

Ricardo Guilherme Dicke nasceu em Chapada dos Guimarães (MT), em 1936. Por dez anos viveu no Rio de Janeiro, onde publicou Deus de Caim, menção honrosa do Prêmio Walmap de Literatura de 1968, mas decidiu retornar para Mato Grosso em 1975.

“Ele era uma figura muito sensível, tinha algumas fragilidades psicológicas. Então ele não aguentou ficar morando no Rio e precisou voltar para Cuiabá”, conta o pesquisador Rodrigo Simon de Moraes. De volta ao estado, ele continuou publicando graças aos contatos que havia feito no Rio. Quando Simon foi a Cuiabá em 2016, no entanto, não encontrou nenhum livro do autor na principal livraria da cidade.

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O escritor Ricardo Guilherme Dicke, autor de 'Madona dos Páramos', morto em 2008. Foto: Acervo da família de Ricardo Guilherme Dicke

“Dicke tinha um certo ressentimento com o estado dele. Nas escolas, os estudantes e professores não sabiam quem era ele”, lembra Carlini, que distribuiu suas edições em escolas mato-grossenses. “Ele se ressentia do desconhecimento do público por um lado, mas se conformava por outro, porque, queira ou não, ele que se autoexilou. Foi ele que retornou a Mato Grosso e quis viver uma vida mais afastada de tudo.”

Para aumentar o isolamento do autor, ele era tímido e reservado e tinha uma dicção ruim. O escritor Joca Reiners Terron, cuiabano que vive em São Paulo, conheceu Ricardo Guilherme Dicke no começo dos anos 2000, em uma feira literária em Cuiabá. “A gente trocou apenas algumas palavras, era um cara muito fechado”, lembra ele. Na infância, Terron chegou a ver um livro de homenagem ao autor nas mãos de um primo, mas só entrou em contato com o trabalho de Dicke já adulto, procurando pelos livros em sebos – e pagando caro por eles.

Linguagem própria

Além da distância das principais editoras do País, o estilo e o cenário da obra de Dicke podem ter contribuído para um desinteresse dos leitores. Nas décadas de 1970 e 1980, enquanto outros escritores brasileiros narravam a vida nas metrópoles – Rubem Fonseca sobre o Rio e Dalton Trevisan sobre Curitiba, por exemplo –, Dicke fazia o contrário, com histórias ambientadas no sertão. “À primeira vista, acredito que ele parecia um tanto quanto defasado em termos de território”, diz Terron.

A partir de Graciliano Ramos, a literatura brasileira passa a privilegiar, segundo o escritor, “a economia de meios, a exatidão vocabular”. Na contramão, Dicke escrevia livros verborrágicos. “Eu tenho a sensação de que talvez o Dicke soasse anacrônico por estes dois motivos: por estar situado num território rural e pelo estilo prolixo em oposição ao minimalismo predominante.”

Capa de 'Madona dos Páramos', de Ricardo Guilherme Dicke, relançado pela editora Record. Foto: Record/Divulgação

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Prováveis motivos do desconhecimento de Dicke, o trabalho de linguagem e o sertão mato-grossense também são o que torna o autor merecedor de uma redescoberta para Rodrigo Simon de Moraes. “Ele cria um universo que é só dele, que ele chama de sertão mato-grossense. E, para criar esse novo mundo, ele cria a linguagem também, combinando um falar local rústico com uma sofisticação de linguagem. O resultado disso é algo que poucas vezes a gente viu na literatura brasileira.”

A comparação de Ricardo Guilherme Dicke a Guimarães Rosa faz certo sentido, reconhece Simon, mas se tratam de universos diferentes. “A mesma coisa que o Rosa conseguiu fazer naquele sertão mineiro, com a inventividade de linguagem dele, o Dicke faz de maneira própria”, afirma o pesquisador.

Como é Madame dos Páramos

No romance Madona dos Páramos, 12 fugitivos de uma prisão atravessam o Mato Grosso rumo à Figueira-Mãe, “um lugar perdido no maior sertão do norte, no tuaiá dos mato-grossos, que todos os perseguidos almejam encontrar”. Um deles, José Gomes, diz em certo trecho: “Dei-me conta de que sou curiboca de lei, irmão do cedro e da peroba, amigado do rio e do céu, filho das serras e dos sarobás, parente dos caminhos e dos pássaros livres e por isso minha lei de agora em diante é ter o perigo por companheiro e a morte por sombra e testemunha, comer distância com poeira, viver de lonjura e estradas e esporear no vazio, feito redomão sarapantado”.

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Quando Dicke publicou o romance, em 1982, a questão ambiental não despertava tanto interesse na literatura brasileira. Mais do que isso, a natureza ainda era vista como inimiga do homem, explica Simon. Outra vez na contramão, Dicke via na natureza o caminho para a transcendência do ser humano.

“Acredito que escrever usando o Mato Grosso como território literário é a verdadeira marginalização. Porque é um território que não criou um espaço mítico na imaginação brasileira”, afirma Terron, que também ambienta seu último livro, Onde Pastam os Minotauros (Todavia, 2023), no estado.

O Mato Grosso do Dicke é um Mato Grosso que não existe mais na medida em que a aparência da região foi destruída. Então, me parece que isso acaba atribuindo ainda mais importância para a recuperação da obra dele.

Joca Reiners Terron

Terron percebe que a vontade literária de retratar o “antiêxodo”, personagens que depois de uma experiência como migrantes na metrópole voltam para o seu lugar, se intensificou nos últimos anos. “E me parece bom que seja assim, porque o Brasil não é só as grandes cidades. É fora das grandes cidades que a presença da lei, do Estado, se torna mais frágil. E é nessa franja do Estado que as disputas políticas e econômicas do presente estão sendo travadas.”

Madona dos Páramos

  • Autor: Ricardo Guilherme Dicke
  • Editora: Record (518 páginas; R$ 53,90 | E-book: R$ 37,73)
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