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Opinião|Tudo ou Nada: mãe versus Estado

Pela história de uma mãe solteira ameaçada de perder a guarda de um dos filhos quando este se acidenta, o longa-metragem francês Tudo ou Nada discute as relações entre o poder do Estado e os direitos do indivíduo. Intenso e inteligente, o filme evita o maniqueísmo e as respostas fáceis para questões complexas

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

Tudo ou Nada (Rien à perdre) é o novo filme estrelado por Virginie Efira. A atriz trabalha tanto que a imprensa francesa já define mais este lançamento de um "Efira movie". Pelo jeito, ela tenta competir com sua colega e compatriota, a notória workaholic Isabelle Huppert. Como semelhança adicional, ambas, apesar de trabalharem de maneira insana, colocam muito talento em tudo que fazem.

Em Tudo ou Nada, dirigido por Delphine Deloget, Efira é Sylvie Paugam, mãe solo de dois filhos, um menino de seis anos e outro, adolescente. Moram em Brest, cidade da Bretanha. Um dia, o garoto mais novo acorda de noite para fazer uma omelete e acaba sofrendo um acidente doméstico. Queima-se no fogão e por pouco não incendeia a casa inteira. Ficou ferido no abdomen e teve de ser atendido num hospital.

 

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A Assistência Social fica sabendo do acidente. Acusa a mãe de negligência e lhe tira a guarda do filho menor. A medida pode ser provisória ou definitiva. Depende do juiz. Depende das instituições e de sua lógica, nem sempre coincidente com o senso comum. Ao tentar recuperar o filho, a vida de Sylvie se torna uma via-crúcis.

A história mostra um problema digno de atenção. Um país civilizado como a França cuida das suas crianças e o Estado não hesita em intervir quando alguma delas parece estar em situação de risco. Esse zelo, em princípio meritório, levanta uma dúvida: até onde pode (ou deve) ir o Estado em contraposição ao poder dos pais e mães?

Eis aí uma questão complexa, cujo desenvolvimento forma o cerne desse filme tão necessário quando envolvente.

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A diretora poderia ter optado por uma situação mais óbvia para pender por um lado ou por outro. Poderia, por exemplo, colocar em cena uma família abertamente disfuncional para justificar a intervenção do Estado. Ou o contrário, uma família que perde a guarda por outro motivo, falta de condições financeiras, por exemplo. Prefere, no entanto, o risco de mostrar uma realidade familiar mais ambivalente e, por isso mesmo, mais próxima da realidade dos nossos dias.

Obviamente, a mãe e a vida que leva estarão em julgamento no caso. Sylvie nada tem de mãe desnaturada. Pelo contrário, ama os filhos. Mas também não leva uma existência convencional e não encarna a figura da matriarca padrão.

Por ocasião do acidente, trabalhava como garçonete num clube noturno. Vive ocupada e não tem muito tempo para se dedicar à casa ou à educação dos filhos. É irritável e se torna agressiva com facilidade. Parece ter problemas de relacionamento. Tudo conta contra ela. Merece por isso ser demonizada? Ou responsabilizada por um acidente doméstico? É justo que o Estado lhe tome um filho por não fazer o papel de uma mulher mais convencional, "do lar"?

Esse debate é tão mais atual quando, em nome de uma liberdade absoluta, pais e mães de alguns países sentem-se no direito de educar seus filhos em casa (homeschooling), pretensamente para livrá-los de influências nefastas de professores e colegas de escola. Ou seja, tentam isolar as crianças do mundo social, visto como ameaçador. Esse extremismo se presta a distorções costumeiras da ultra-direita com seus discursos sobre a liberdade absoluta.

Em Tudo ou Nada examina-se o pólo oposto. O Estado, que sempre diz agir "em benefício" das famílias, mostra-se rígido, burocrático, antiquado, incapaz de compreender nuances de uma vida familiar que pode nada ter de convencional, mas nem por isso seria incompatível com a criação de um filho. As formações familiares se alteram e o Estado não detecta essas mudanças.

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Fiel à sua origem, Deloget dá à ficção uma forte pegada documental. Câmera próxima aos personagens, em especial a Sylvie, interpretada com bravura e ternura por Virginie Efira. Mas é todo um foco nos ambientes domésticos, sempre um pouco bagunçados, no frenesi da vida diária, no entrechoque entre famílias, amigos, funcionários, advogados e psicólogos, que dão sentido e energie à obra. Em meio a interesses conflitantes que fazem a vida social, há que se encontrar um ponto de escape, senão de equilíbrio - em especial quando o choque se dá entre o gigantismo do Leviatã estatal e a fragilidade de cada vida individual. Sylvie não se rende e opta pela radicalidade, o que também pode dar origem a controvérsias. O benefício é do filme, que envolve, emociona e faz pensar.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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