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Opinião|'Zona de Interesse' e seus desafetos

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Zona de Interesse parece um filme feito de propósito para ilustrar a expressão "banalidade do mal", criada por Hannah Arendt no livro sobre o carrasco nazista Adolf Eichmann. Eichmann não seria um monstro. Apenas um burocrata, bastante disciplinado e empenhado em tornar o genocídio o mais eficaz possível. A tese é controversa e tem sido debatida décadas a fio. Os críticos dizem que ao fazer da maldade algo banal, Arendt (que era judia) estaria minimizando os crimes nazistas. Não creio que tenha sido essa a sua intenção, mas esta é outra história. 

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Em Zona de Interesse vemos Rudolf Höss (Christian Friedkin), sua esposa Hedwig (Sandra Hüller) e família vivendo placidamente ao lado do campo de extermínio de Auschwitz, comandado por ele. Joga no contraste entre uma vida burguesa e confortável, numa casa ampla dotada de piscina e jardim, e o campo de extermínio emblemático do Holocausto. 

A opção de Glazer, inspirado em romance de Martin Amis, é deixar o campo de extermínio - e seus horrores - em plano quase virtual, como um soturno ruído de fundo que chega à casa e à família alemã apenas de maneira deslocada, como uma metonímia do horror. Ouvem-se gritos ao longe. Algumas cinzas suspeitas chegam ao jardim. A mulher do chefe nazista experimenta um casaco de peles subtraído a uma prisioneira. 

O tom do filme é gélido. E gela os ossos de espectadores, pelo menos dos que não precisam de cenas de violência explícita para se emocionar ou sentir asco. 

Eles foram assim mesmo? Sádicos cruéis ou eficazes burocratas da arte de matar? Há uma resposta conclusiva para isso? Ou nos conformamos com o mistério ou enfrentamos a questão de entender como uma sociedade de cultura tão avançada como a alemã foi capaz de chegar a atos tão extremados de barbárie. 

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O filme vem despertando polêmica, nem tanto por suas óbvias qualidades cinematográficas, mas pela maneira pouco usual de retratar o Holocausto. O famoso texto de Jacques Rivette, De l'Abjection, sobre um plano considerado imoral em Kapó, de Gillo Pontecorvo, tem sido exumado tanto para atacar como para defender o filme de Glazer.

Para quem não lembra: Rivette chama de abjeto o plano em que a personagem de Emmanuelle Riva joga-se contra a cerca de arame eletrificado e suicida-se. A câmera dá um close na mão da prisioneira contra o arame. O conjunto da obra é condenado em função desse plano. Mais: Rivette escreve, com todas as letras, que um cineasta capaz de um plano como este é digno apenas do desprezo. Vamos citar, para deixar registrado: "...l'homme qui décide, à ce moment, de faire un travelling-avant pour recadrer le cadavre en contre-plongé, en prenant soin d'inscrire exactement la main levée dans un angle de son cadrage final, cet homme n'a droit qu'au plus profond mépris". (Jacques Rivette, Cahiers du Cinéma, nº 120, junho de 1961)

Sempre achei tolice esse tipo de afirmação taxativa e fanática. Você pode ou não gostar de um filme, ter ou não restrições de como as coisas nele são mostradas. Faz parte do jogo e a linguagem, a mise-en-scène, é tudo - não as boas ou más intenções do cineasta, a nobreza ou não do assunto, etc. Acontece que, a partir de um único plano, jogar na fogueira a obra inteira e a própria pessoa de um cineasta (ainda mais Gillo Pontecorvo, autor de filmes políticos impensáveis para a nouvelle vague, com exceção de Godard, como Batalha de Argel e Queimada) me parece atitude mais próxima da de um Torquemada do que de um crítico de cinema. 

A questão de Glazer, para voltar a Zona de Interesse, é mais a de não mostrar do que de mostrar. Pois bem. Para mim funcionou. Escolado por centenas de filmes dedicados ao Holocausto, este me impressionou muito. Dizem que o filme é gelado. Sim, acho que fazia parte da intenção estética do diretor provocar essa sensação. O gelo na alma - quer coisa mais terrível?

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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