Paisagem reinventada

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Por Antonio Gonçalves Filho
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Nas culturas ancestrais, afrescos eram quase uma extensão da natureza. Mais tarde, a representação artística da paisagem passou pelo crivo da percepção social do mundo natural. Foi só durante o Renascimento que se tornou possível sua apreciação estética, abrindo caminho para os holandeses consagrarem a paisagem nos séculos 16 e 17, ao estabelecer com ela um gênero independente da pintura. Essencial para o desenvolvimento do impressionismo e do romantismo, a paisagem quase morreu ao ser submetida pelos modernistas à ditadura da razão. Com o advento da arte conceitual, a natureza foi dominada pelos artistas da land art e novamente sumiu da tela, renascendo nas paisagens monumentais dos neoexpressionistas alemães como Anselm Kiefer, para ser posteriormente renovada por pintores como Gerhard Richter, Alex Katz e outros.No Brasil, uma nova geração de pintores de paisagem surge, renovando o gênero com o reforço de veteranos, um deles o pintor Paulo Pasta, mestre desses jovens que buscam na evocação da natureza menos uma correspondência naturalista e mais um compromisso ético com a pintura. Numa época dominada por imagens de segunda mão, nascidas do olho mecânico das máquinas digitais, a paisagem se torna, enfim, não o veículo de um sentimento nostálgico do mundo agrário, pré-moral, mas um sinal de mudança que aponta para o futuro. Beuys, em sua época, fundou o Partido Verde alemão e usou a arte para divulgar sua luta ambiental. Os novos "paisagistas" brasileiros não formam nenhum movimento ecológico ou político, mas estão mudando a arte em busca de um fundamento ético para o ato de pintar. Num ensaio visual para o número 14 da revista Serrote, publicada pelo Instituto Moreira Salles, o pintor Paulo Pasta chega a revelar que foi a pintura que o ensinou a ver a paisagem, e não o contrário.Pasta cita o primeiro momento de sua carreira, em 1984, quando pintava os canaviais de sua terra natal, Ariranha, no interior de São Paulo. Era essa paisagem que tornava mais densa a sua relação com a pintura, não o registro do que via. "Ela constituía, de fato, minha ligação com o mundo", admite. Um mundo, aliás, reinventado graças a essa pintura, capaz de torná-lo novamente fresco, original, depois de ser maculado pelo excesso de imagens da era digital.A trajetória artística de Pasta é um pouco como a do pintor norte-americano Richard Diebenkorn (1922-1993), que oscilou entre a representação figurativa e o abstracionismo lírico, chegando à geometrização da paisagem na série Ocean Park. O matissiano Diebenkorn tentou captar a luz da costa oeste americana de forma antinaturalista. Já Pasta persegue uma luz outonal sem buscar o ideal pastoral da poesia clássica quando retrata paisagens do interior do Brasil. Desta vez, sem a cor desbotada do acadêmico Almeida Junior, pioneiro no tratamento da dura luz tropical e de temas regionalistas. Pasta não é um colorista nem um paisagista, mas quer ter uma relação mimética com a paisagem. É, antes, um artista imerso no ato de "reconhecer um elemento espiritual" na arte da paisagem - sem esquecer que não foi esse o gênero que o consagrou, mas uma pintura de vocação construtiva.Coincidência ou não, muitos dos jovens pintores que despontam no cenário são alunos dele e se voltaram igualmente para a paisagem e o estudo dos velhos mestres da pintura: Lucas Arruda (mais informações nesta página), Felipe Góes, Marina Rheingantz, Bruno Dunley e Rodrigo Bivar são alguns deles. Felipe, paulistano de 30 anos, começou há seis anos com uma pintura que não tentava esconder sua fatura. Passou depois para as paisagens imaginárias - "de lugares que não existem" - e chega agora à terceira fase, que chama de "dissolução" - da figura e da matéria, uma vez que usa tinta acrílica e guache, à maneira do holandês Bram van Velde (1895-1981). Van Velde, amigo de Beckett, usou a pintura como um instrumento de luta contra o próprio niilismo. Góes diz que o holandês soube encarar a "crise do pintar", como Diebenkorn, outro de seus mestres, que, segundo Góes, "venceu a resistência do material".O veterano Rodrigo Andrade, contemporâneo de Pasta que começou sua carreira no ápice da onda neoexpressionista, nos anos 1980, sabe o que isso significa. Na época, pintar era acumular matéria sobre a superfície da tela. Depois da 29.ª Bienal (2010), ele, ligado à abstração, não abandonou a paisagem. Passou a produzir pinturas que parecem fotos vista de longe. Contudo, a ilusão fotográfica desaparece conforme ele se aproxima da presença concreta da tinta. A purificação do campo visual no século 21 pode começar por aí.

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