O vagabundo mais workaholic da história nasceu em 1914, em L.A. Mack Sennett, do estúdio Keystone, especializado em pastelões, pediu a Charlie Chaplin, de 24 anos, que “improvisasse alguma coisa”. Chaplin escolheu a discrepância: paletó, chapéu e bigode pequenos demais, calça e sapatos grandes demais. Sennett amou, e o planeta assinou embaixo.
Com o público apaixonado à primeira vista, logo Chaplin estava escrevendo, dirigindo e produzindo seus filmes, na sua United Artists. E insistiu nos mudos mesmo depois do advento do cinema sonoro: se o Vagabundo falasse, deixaria de ser universal, tornando-se apenas um inglês.
Na infância, em Londres, Chaplin passou fome. Estudou só até o ensino fundamental. O pai era alcoólatra e a mãe enlouqueceu. Carlitos fez de Chaplin a pessoa mais famosa do mundo, objeto de uma bajulação que teria embaraçado Luis XIV. Uma vez, o ator foi a um parque de diversões, onde havia um concurso de quem imitava melhor Carlitos. De brincadeira, Chaplin se inscreveu com um nome falso. Dentre os 40 competidores, ficou em 27º lugar.
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/R2E4SXOUVVC75GAR6AHLVT75AE.jpg?quality=80&auth=7ea6c792d2a63808bf384cc6adefc408e4fb0e0f93aa574caf6c3fd9835f7804&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/R2E4SXOUVVC75GAR6AHLVT75AE.jpg?quality=80&auth=7ea6c792d2a63808bf384cc6adefc408e4fb0e0f93aa574caf6c3fd9835f7804&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/R2E4SXOUVVC75GAR6AHLVT75AE.jpg?quality=80&auth=7ea6c792d2a63808bf384cc6adefc408e4fb0e0f93aa574caf6c3fd9835f7804&width=1200 1322w)
A persona era maior que o personagem. Carlitos assumiu uma aura de outsider quixotesco. Luzes da Cidade, seu filme de 1931, virou o nome de uma editora icônica de São Francisco que publicou o Uivo, o clássico beat de Allen Ginsberg, e ainda existe. Tempos Modernos (filme de 1936) foi como Sartre chamou a revista que fundou em 1945. O movimento pelos direitos civis nos EUA, nos anos 1960, e o sindicato Solidariedade, na Polônia da década de 1980, invocaram a imagem do Vagabundo.
Um dia, quando Chaplin estava de férias na Europa com a família, a casa caiu. O cineasta, que tinha 64 anos e vivia há 42 nos EUA, foi acusado de antiamericanismo e libertinagem. Chaplin ficou 20 anos sem pisar nos Estados Unidos. Voltou só vinte anos depois, para receber um Oscar honorário e uma ovação em pé de 12 minutos, até hoje a mais longa da história da cerimônia.
Em Charlie Chaplin vs. America: When Art, Sex, and Politics Collided, o autor Scott Eyman conta como a treta aconteceu. Apesar do subtítulo, não é sensacionalista, mas uma crônica política e cultural de um período crucial na vida de um dos titãs da arte no século 20.
A encrenca começou com O Grande Ditador, de 1940 (Chaplin já fora alvo de uma queixa formal da Ku Klux Klan, por causa do curta O Peregrino). Chaplin concebeu o filme em 1938, um ano antes do início da Segunda Guerra Mundial, por causa da perseguição nazista aos judeus. A semelhança física entre Hitler e o Vagabundo lhe inspirou uma história na qual ele encarna o ditador e também um barbeiro judeu que é confundido com o Führer.
A maioria dos americanos queria os EUA fora da guerra. O primeiro-ministro britânico, Neville Chamberlain, evitava melindrar Hitler, e anunciou que proibiria O Grande Ditador na Inglaterra. Os nazistas realmente proibiram o filme, assim como Stalin (talvez porque certas cenas de manifestações de massa sugerissem analogias entre os dois totalitarismos).
Em setembro de 1941, após o lançamento da película, Chaplin foi intimado pelo Congresso Americano, que investigava “propaganda pró-guerra”. O próprio presidente Franklin Roosevelt adorava o filme, já um sucesso. E dois dos filhos de Chaplin tinham se alistado no exército americano e combateriam na Segunda Guerra Mundial. O ataque japonês a Pearl Harbor resolveu o enrosco.
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/7J2RLVSARZEMPN53IRES7E2B7U.jpg?quality=80&auth=479a63dd40552fa4d4616677e55772dd0a967943c99a7202e30dc9f07ab12d0f&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/7J2RLVSARZEMPN53IRES7E2B7U.jpg?quality=80&auth=479a63dd40552fa4d4616677e55772dd0a967943c99a7202e30dc9f07ab12d0f&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/7J2RLVSARZEMPN53IRES7E2B7U.jpg?quality=80&auth=479a63dd40552fa4d4616677e55772dd0a967943c99a7202e30dc9f07ab12d0f&width=1200 1322w)
Mas Chaplin agora era suspeito. O FBI elaborou um dossiê de duas mil páginas sobre ele. O caldo entornou quando o cineasta apelou para que os Aliados abrissem uma segunda frente de guerra na Europa, depois que os nazistas, rompendo o tratado assinado em 1939 por Hitler e Stalin, invadiram a União Soviética em 1941.
Como desgraça pouca é bobagem, Chaplin foi envolvido num escândalo sexual, inflamado por sua nêmesis, a colunista de fofocas Hedda Hopper, que o considerava comunista e tarado. Hopper escreveu ao senador Richard Nixon e ao chefe do FBI, Edgar Hoover, denunciando o imigrante inglês, que nunca adquirira a cidadania americana, por se ver como um cidadão do mundo.
Chaplin era bonito – parecia baixinho, mas era um efeito dos vilões brutamontes com quem contracenava. Num jantar em Paris com Picasso (1,69 m) e Sartre (1,67m), o pintor espanhol exclamou: “Viva os nanicos!” Mas Chaplin media 1,75m. Depois, Picasso, que odiava a comida e o clima britânicos, rosnou: “É um mistério como os ingleses tiram a roupa por tempo suficiente para procriar”.
Sedutor e famoso, Chaplin atraia as mulheres – algumas bem mais jovens. A primeira esposa, Mildred Harris, tinha 16 anos, e ele 29. Ela disse que estava grávida e se casaram, para se separem pouco depois, quando o marido descobriu que a gravidez era só golpe do baú. A seguinte, Lita Grey, engravidou de verdade aos 17 anos. O matrimônio durou três anos.
Com a atriz Paulette Godard, então com 26 anos, durou o dobro. Depois foi Oona, de 18 anos. Era filha do Nobel de literatura, Eugene O’Neill, que ficou pistola porque tinha a mesma idade do noivo (54 anos), e deserdou Oona. Mas ela foi o amor da vida de Chaplin. O casamento durou 34 anos, até a morte do cineasta, e tiveram 8 filhos.
Em 1952, com os Chaplin de férias na Europa, surgiu a notícia de que o Procurador-Geral americano não autorizaria o cineasta a reentrar nos EUA. Chaplin respondia a dois processos envolvendo Joan Berry, uma starlet que tinha casos com homens poderosos (como o magnata J. Paul Getty).
Quando o comediante terminou o relacionamento, ela invadiu a casa dele de revólver em punho. Chaplin lhe deu dinheiro, e Berry procurou Hedda Hopper, alegando estar grávida.
Berry moveu um processo de paternidade. A defesa mostrou um exame de sangue provando que Chaplin não era o pai da criança. O advogado de Berry, segundo o qual o cineasta era “um urubu grisalho e lascivo”, alegou que os exames de sangue não eram 100% confiáveis.
Em 1953, a própria queixosa escreveu uma carta ao advogado de Chaplin, retirando o pedido de paternidade. Mas aí o acusado já não vivia nos EUA, e perdera o processo por 11 a 1.
Naquela altura, além do FBI (que o tomava por espião soviético), a Inteligência do Exército e da Marinha, a Receita Federal, a CIA, o Departamento de Estado e o Serviço Postal dos EUA vigiavam Chaplin. O veredicto final do relatório foi que Chaplin nunca tinha sido comunista. Porém, justificava a proibição da reentrada dele nos EUA, considerando-o depravado política e sexualmente.
Amargurado, Chaplin decidiu que não queria regressar. Em 1931, ele dissera a Albert Einstein: “As pessoas me adoram porque todas me entendem, e o adoram porque ninguém o entende.” Agora parecia que os americanos já não mais o compreendiam (embora o New York Times publicasse um editorial em defesa dele).
As posses de Chaplin se encontravam nos EUA, incluindo os negativos dos seus filmes, e ele receava perder tudo. Oona regressou para fechar a casa em L.A., e recolheu discretamente os bens da família depositados em cofres – e costurou notas de mil dólares nos forros de seus casacos. De volta à Europa, renunciou à cidadania americana. Ela e ele estão enterrados lado a lado na Suíça, onde viveram até o fim.
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/NY5XAFYJGRANNK7TG35L5EGI3E.jpg?quality=80&auth=bbb5d6ce98c0a2ff054803897bb3d1338504799d800afe87dc2a31dbf41c4391&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/NY5XAFYJGRANNK7TG35L5EGI3E.jpg?quality=80&auth=bbb5d6ce98c0a2ff054803897bb3d1338504799d800afe87dc2a31dbf41c4391&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/NY5XAFYJGRANNK7TG35L5EGI3E.jpg?quality=80&auth=bbb5d6ce98c0a2ff054803897bb3d1338504799d800afe87dc2a31dbf41c4391&width=1200 1322w)
Como nota o biógrafo, já em Tempos Modernos Chaplin criticava uma sociedade que “cultua a tecnologia além da sanidade”. O que hoje provavelmente é mais verdadeiro, numa cultura lobotomizada pelas redes sociais. Chaplin foi cancelado em meados do século 20, por colunas de fofocas e fake news, e o FBI.
Outra lição do livro – que separa os fatos da ficção – é que talvez devamos separar a arte dos artistas, que não precisam ser as nossas pessoas favoritas. A obra pode ser perfeita, porém o humano é sempre imperfeito - mas como todos merece a presunção da inocência e o direito à defesa, prerrogativas de uma civilização democrática.
Charlie Chaplin vs. America: When Art, Sex, and Politics Collided
Scott Eyman
Simon & Schuster
Em inglês (sem previsão de edição brasileira)
US$ 26,15 na Amazon